OFM e a história de um diretor desportivo expulso
Não é fácil ter mais olhos que barriga
A Volta a Portugal arrancou esta quarta-feira, mas as confusões anteciparam-se. Na véspera da prova rainha, a equipa que conquistou o trono no ano passado viu o seu diretor desportivo expulso. Expulso pelos próprios ciclistas.
Preâmbulo
A verdade e o tempo têm uma relação muito curiosa e tão simples quanto isto: com o passar do tempo, a verdade aparece. Pode demorar algum tempo, pode demorar muito tempo, pode demorar demasiado, mas ela aparece. Costuma-se dizer que é possível enganar algumas pessoas durante muito tempo ou enganar muitas pessoas durante algum tempo, mas não se consegue enganar muitas pessoas durante muito tempo. E isso está a experimentar José Barros.
Há cerca de um ano, foi aqui escrito no rescaldo da Volta:
«Pagar salários e cumprir os acordos não é importante.
Começas a atrasar salários em abril, em junho já cortaste a metade do plantel e investes esse dinheiro a garantir que tens dois ou três ciclistas que vão estar a tope na Volta. Não interessa se fizeram o ano todo a discutir vitórias ou se fizeram o ano todo apagados. Dois ou três andam, dão nas vistas, o patrocinador fica contente, pareces um excelente diretor desportivo (mesmo que os ciclistas corram livremente ignorem o que mandas), o patrocinador mantém o patrocínio mais um ano, mantens a equipa e o teu ganha-pão e está tudo bem. Exceto para os ciclistas que estão desde maio ou junho sem receber e só voltarão a receber em janeiro (se encontrarem equipa). Para esses a situação não está tão fácil, pagar as contas está difícil, sustentar os filhos também, mas também parece que somos poucos os que nos preocupamos com isso.
(...)
Os truques e esquemas de agora são os mesmos há demasiado tempo e continuam a ser premiados. Continuam a valer a pena.»
De forma sarcástica, pretendia denunciar uma triste realidade que se vive em Portugal e que fica escondida atrás dos holofotes da Volta a Portugal. Para alguns fiz figura de idiota. Surgiram críticas, não apenas por estas linhas mas por muitas outras em que era possível entender críticas a algumas equipas, nomeadamente à OFM.
Com estas linhas pretendia dizer que havia equipas com salários em atraso, que não pagavam a alguns ciclistas mas que pagavam aos líderes e inclusive pagavam a sua preparação. E quando digo preparação, não me estou a referir apenas a suplementação, mas a uma preparação que incluí produtos não permitidos.
A realidade é tão pouco divulgada que quando o é, parece mentira. E na altura não podia sustentar aquilo que dizia, mas lá está, o tempo passa e a verdade vai aparecendo.
O que se tem passado na OFM
Já no ano passado, quando a equipa ganhou a Volta a Portugal, vários ciclistas tinham salários em atraso e essa situação manteve-se em 2014. Foram feitas promessas porque a equipa tinha arrasado a Volta mas até ao momento os ciclistas apenas receberam um salário e já se passaram mais seis meses.
Inicialmente foi dito que os patrocinadores estavam a falhar, mas desde há algumas semanas está esclarecido que os patrocinadores têm feito pagamentos e este dinheiro tem sido utilizado pelo diretor desportivo José Barros, em despesas pessoais mas não só.
Em maio os ciclistas ameaçaram deixar de correr, mas tal possibilidade acabou por ser posta de parte. Como aqui escrito há dois meses, os ciclistas precisam da Volta a Portugal para se mostrarem.
Os ciclistas começaram então a ponderar a expulsão do diretor desportivo. Depois de várias semanas de conflito entre os ciclistas (e o staff que também não recebe) e o diretor desportivo que os saca, José Barros foi expulso da equipa. Não foi ele que se demitiu, foram os ciclistas que correram com ele, uma situação que até agora nunca tinha visto.
As conversas no pelotão sobre a conduta de José Barros já duram há muitos anos, desde os tempos em que a sua equipa Casactiva arrasava por completo a Volta a Portugal do Futuro, vencendo quase todas as etapas e dominando o pódio final. É o tipo de performance coletiva que levanta muitas suspeitas quando protagonizada pela Sky, mas quando é outra equipa ninguém parece suspeitar de nada.
Apesar de só ter vindo a público um controlo anti-doping positivo (com o vencedor da Volta a Portugal do Futuro 2008), sempre existiram enormes desconfianças no pelotão sobre a equipa sub-23 do Sobrado. E nestas coisas o pelotão não se costuma enganar.
Nuno Ribeiro é o presidente da União Ciclista do Sobrado, mas até há muito pouco tempo José Barros estava muito mais envolvido na gestão da equipa do que o próprio presidente. Desta forma, Nuno Ribeiro está ilibado de responsabilidades.
Para os corredores, a situação é bastante grave. Para ser ciclista profissional é preciso uma grande paixão pela modalidade, mas não basta paixão pelo ciclismo para viver. Tratam-se de homens que têm famílias para sustentar e apesar do seu trabalho e do esforço diário, não conseguem através destes levar dinheiro para casa, para as suas esposas e os seus filhos (quem os tem).
Ainda muito falta ser conhecido sobre este caso, mas a comunicação social poderia já o ter abordado de uma forma muito mais profunda do que o fez até agora. No entanto, não têm interesse.
O ciclismo move-se com grande união. Quando a Volta sai de Fafe para Lousada e depois para a Maia e depois para Gondomar e por aí fora até Lisboa, não são apenas os ciclistas que vão. É uma enorme caravana, muita gente que pertence ao grupo e quer continuar a pertencer. Como tal, convém agradar a toda a gente e respeitar a lei do silêncio. Basta escrever uns parágrafos a dizer quem esteve na fuga do dia, qual foi a vantagem máxima, quem trabalhou no pelotão e quem venceu ao sprint.
Contudo, ainda muito falta por desvendar, porque nenhum ciclista pode colocar o assunto em pratos limpos e nenhum pode dar a cara para dizer o que se passa.
Um dos principais ciclistas da equipa tentou recorrer às instituições competentes procurando um pouco de justiça. Como consequência, foi posto fora da equipa para a Volta a Portugal. É assim que a coisa funciona. Ou te calas, ou estás fora.
No entanto, a situação não parece igual para todos.
Numa entrevista publicada na edição de terça-feira do jornal Faro de Vigo, Gustavo César Veloso diz:
«Tenho claro que agora só tenho que olhar para a minha economia. Irei para onde o meu esforço traga maiores rendimentos. Já corri por muitos anos por amor e dando prioridade à parte desportiva.
(... na resposta seguinte ...)
Além de ser o meu trabalho, o ciclismo é a minha grande paixão e enquanto haja quem me queira pagar para render ao nível que estou a fazer este ano, continuarei.»
O ciclista usa este ano (em que os seus companheiros não recebem) como exemplo. Diz que têm que lhe pagar para render a este nível e, se o está a fazer, é porque lhe estão a pagar, ou isso entendo com as suas palavras.
Gustavo César Veloso andou muito apagado durante os primeiros meses de 2013* e depois apareceu em agosto a tope, foi 2º na Volta, venceu uma etapa e esteve entre os cinco primeiros em todas as etapas que realmente interessavam para a geral. Apenas foi batido pelo seu colega e amigo Alejandro Marque, o que será tema para outro dia, o dia em que a UCI ou a federação espanhola esclareçam se há motivo para suspender o ciclista ou não.
Este ano, César Veloso estava novamente muito apagado, mas no prólogo do Troféu Joaquim Agostinho já esteve melhor (4º) e a vitória final foi para o seu companheiro Délio Fernández. No prólogo de hoje já foi segundo. Se eu fosse ciclista com ambições de vencer a Volta a Portugal, teria medo do que poderá fazer nos próximos dias.
Como adepto deste desporto, apenas espero que a situação se resolva da melhor forma e todos os ciclistas com salários em atraso, nesta e noutras equipas (porque as há), recebem o que lhes é devido. No entanto, sei que muitos ficarão por receber.
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* correção: venceu uma prova do Troféu Cidade de Amarante em maio. Não tem o nível da Volta, mas fica aqui o esclarecimento.
Artigo retirado de carrovassoura
http://carrovassoura.blogspot.pt/2014/07/ofm-e-historia-de-um-diretor-desportivo.html