FuraDouro, esse delicioso trocadilho! (Parte 1)
11 de Julho de 2015 // 238Km // 4050m AC+
Este ano as responsabilidades não permitiram que comemorasse o meu dia de aniversário a pedalar. Por isso, no dia seguinte não deixei passar a oportunidade de me presentear com mais uma aventura pelas maravilhosas estradas e paisagens aqui do Norte.
O meu plano original contemplava uma volta um pouco mais extensa, numa outra zona geográfica, mas o facto de não ter os preparativos feitos em condições e também o adiantar da hora por conta das festividades fizeram com que mudasse de ideias.
Quando já se tem a minha bagagem em termos de percursos efectuados existe sempre a necessidade de ser criativo na hora de desenhar novas aventuras, para evitar a monotonia, o facilitismo e a repetição. Desta vez não seria excepção, com a agravante de ter de o fazer bastante em cima da hora. Contudo, lembrei-me de uma ideia engraçada, um trocadilho em que tinha matutado há uns tempos e que seria perfeito para esta ocasião.
Ao meu anúncio de que tinha decidido fazer um dia de FuraDouro não faltaram reacções de surpresa. Na verdade o trocadilho residia aqui mesmo: Não seria um dia para ir “ao” Furadouro, mas sim para fazer FuraDouro. Que é como quem diz, andar aos saltinhos entre as margens do Douro, a modos que “furando” o rio. Dentro do novo intervalo quilométrico que tinha estipulado e encontrando o Douro em Entre-os-Rios, desenhei uma rota que utilizava todas as travessias cicláveis existentes daí até à cidade de Peso da Régua. A saber: Barragem de Carrapatelo (Cinfães), Ponte de Mosteirô (Porto Antigo), Ponte da Ermida (Resende) e Ponte Metálica da Régua (Peso da Régua).
Apesar de já conhecer praticamente a totalidade do percurso, cada visita ao Douro é sempre uma redescoberta, onde saltam à vista novos detalhes e pormenores. Desta vez, contudo, motivou-me particularmente este objectivo interessante das travessias e isso é meio caminho andado para me aguçar o entusiasmo para sair a pedalar.
A escolha do sentido das travessias foi, em grande medida, influenciada pela rota de regresso. Como não queria voltar a subir por Capela ou Sobretâmega quando voltasse para casa (opções que tinha utilizado em voltas mais recentes) optei pela subida de Abragão o que me permitiu dar uma dinâmica interessante ao percurso. Introduzi assim no menu do dia a longa subida ao Alto de Quintela por Mesão Frio. Como gosto destes desafios de montanha, e olhando às inúmeras escaladas que me esperavam, fiquei particularmente satisfeito com a qualidade do rabisco no que a esse particular diz respeito.
Fechei o track no GPS já passava das três da manhã! Duas horas de sono normalmente bastam para repor os meus níveis de energia e assim foi. Às cinco já estava a preparar o pequeno almoço e pouco depois pedalava pela deserta cidade de Valongo.
Saindo de casa, uma das formas mais interessantes de chegar ao Rio Douro é, sem dúvida, subindo a Serra da Boneca, via Capela. Desta vez, a neblina e a luz matinal criaram uma atmosfera extremamente relaxada e agradável que me envolveu ao longo dos 12Km deste aquecimento inclinado. Esta é uma subida que nunca me canso de fazer e portanto é um excelente catalizador para as jornadas que por aí começam.
A descida do lado oposto da serra é rápida e em menos de nada tinha o Tâmega e o Douro a meus pés. A travessia inaugural da série "FuraDouro" não seria feita aqui em Entre-os-Rios, mas sim mais à frente em Carrapatelo. Portanto atravessei o Tâmega para a margem de Alpendurada, acompanhando depois o Douro para montante na famosa N108.
Primeiros dez quilómetros até Alpendurada predominantemente a subir, seguidos de uma pequena descida antes de mais 8km a subir até Penha Longa. O bloco de subida mais a sério começa com o troço até São Lourenço do Douro, que oferece a primeira grande panorâmica do rio e é sempre motivo de registo fotográfico. Aqui sou ultrapassado por alguns companheiros que pedalam céleres em direcção a Cinfães. Acompanho-os à vista na subida, até que paro mais à frente em Veiga, na pastelaria do costume, para um café matutino.
Terminada a subida, em Penha Longa, embalo logo nos 8km de descida que se seguem, baixando 350 metros até lá ao fundo, para junto do rio. E aqui estava o primeiro momento FuraDouro do dia: Barragem de Carrapatelo, no atravessamento da margem Norte para a margem Sul. Terminada em 1972 encurtou bastante a viagem entre o Marco de Canavezes e Cinfães sendo que anteriormente era necessário atravessar o rio vários quilómetros a montante ou a jusante, em Porto Antigo ou Entre-os-Rios, respectivamente.
A hora de passagem na barragem foi perfeita já que cheguei mesmo a tempo de assistir ao sempre fascinante ciclo de utilização da eclusa de navegação. O poço da eclusa enchia-se lentamente para permitir a travessia de um barco a navegar para montante, carregado de turistas alemães. Fico por ali a tirar umas fotografias, esperando alguns minutos até que o barco esteja na posição perfeita para um último registo, antes de ambos seguirmos viagem.
A única verdadeira novidade neste percurso surgia agora, sob a forma da subida até à N222, que percorre a encosta mais acima. Ascensão relativamente modesta, de apenas 4Km, mas que rapidamente me faz acumular mais 250m de subida, oferecendo em troca uma bonita panorâmica sobre um troço mais indómito do rio, pouco ou nada alterado pela modelação de caudal provocada pelas barragens à sua volta.
Lá no alto, a meia encosta do Montemuro, iria então encontrar a N222. Um pouco mais à frente cruzo-me com os companheiros que tinham passado por mim antes e que já regressavam de Cinfães. Uns acenos e umas palavras curtas em movimento foi o que deu para interagir, antes de seguimos viagem, pedalando em direcções opostas.
Depois de um troço de cariz mais descendente, os três quilómetros seguintes até à cidade seriam feitos sempre a subir, numa pendente macia e que não causou grande desgaste. A N222 permite umas vistas desafogadas sobre o vale do rio Douro e com essa distracção rapidamente estou em cima do paralelo que anuncia a chegada a Cinfães.
A descida de Pias oferece duas vistas sempre inesquecíveis: Por um lado uma belíssima panorâmica da bacia de Pala e Porto Antigo, com a majestosa ponte do caminho de ferro como ex-libris. Por outro o enigmático vale do Rio Bestança, porta de entrada para o esmagador mundo montanhoso da Serra de Montemuro. Divido-me entre largar os travões e aproveitar a descida, ou abrandar e contemplar o cenário...
Pouco depois estava em novo "FuraDouro", desta feita na Ponte de Mosteirô, em Porto Antigo, passando agora da margem Sul novamente para a margem Norte. Esta travessia é consequência da Barragem de Carrapatelo e é uma reconstrução/modernização da ponte original, sendo esta nova versão da autoria de Edgar Cardoso, o que aliás justifica o seu aspecto intemporal e bastante elegante.
Pedalo vagarosamente pela margem, contemplando novamente o majestoso e titânico confronto entre o Rio Douro e a Serra de Montemuro, esse imponente gigante que domina a paisagem.
Detenho-me pouco depois de Pala, num muro à berma da estrada. Surripiado ao stock que o filhote nunca consumiu, devoro um lanche em forma de boião, improvável alimentação para um ciclista de longa distância. A cada colherada, uma mirada a um dos meus recantos favoritos do Douro. A tranquilidade é contagiante e fico ali uns bons minutos, absorvido pelo cenário.
Infelizmente a pressão turística já se faz sentir por estes lados. Quando o poder local não resiste à hipnotizante receita das taxas e licenças camarárias surgem aberrações como o enorme caixote branco do Douro Royal Valley Hotel & SPA que agora está empoleirado na encosta, absolutamente impossível de ignorar, tal a forma deselegante como se destaca dos arredores. Coragem houvesse e a cor das paredes exteriores certamente seria outra, mais respeitadora do agradável contexto cénico do rio.
Terminado o lanche, sigo viagem para outra subida espraiada mas já algo exigente. A partir daqui a estrada sobe durante 11 km até à Portela do Gove. O traçado leva a N108 a afastar-se bastante do Rio, encavalitando-se e escondendo-se nos montes em redor. Por causa disso, a meio do caminho a vista oferecida sobre a bacia de Pala/Porto Antigo é ainda mais fantástica e rouba-me novamente alguns minutos de contemplação.
Pedalando sempre com tranquilidade, porque o dia é longo e ainda há muito para ver e calcorrear, chego ao final da subida. A partir daqui seria sempre a descer até à ponte da Ermida, penúltima travessia do dia. Bonitos miradouros populam nesta parte do percurso. Infelizmente estão completamente ao abandono, sinal do total desrespeito para com a louvável intenção de quem os mandou construir naqueles locais, esperançado que as pessoas fizessem das viagens de automóvel algo mais do que um mero exercício de condução de A até B. Num desses miradouros, repito a fotografia tirada há 5 anos, ainda com a BMC, e que mostra o verdejante vale do Douro com a Ponte da Ermida já à vista.
Esta ponte é a travessia mais jovem da minha jornada e uma das mais recentes do Rio Douro. Construída em 1998, revolucionou a ligação rodoviária à cidade de Resende e poupou milhares de quilómetros anuais aos habitantes locais que anteriormente tinham de cruzar o rio na Régua ou em Porto Antigo. Fruto da sua geração, a envolvente em termos de obra não é particularmente fascinante. Domina o habitual cinzentismo pragmático das obras públicas da época. A juntar a isso, talvez por força da regulamentação previdente actual, o gradeamento metálico foi recentemente pintado de amarelo torrado ao invés da cor branca original, apalhaçando bastante a ponte.
A vista que se pode contemplar da ponte não é de todo aconselhável a pessoas com vertigens já que esta é de longe a travessia mais alta do dia, com o tabuleiro implantado 80 metros acima do nível das águas do Douro. Lá em baixo, a linha de comboio e a estação da Ermida parecem miniaturas saídas de uma loja de brinquedos. Dou por mim a garantir que todos os objectos que trago estão devidamente seguros e a salvo. Incluindo os óculos, que recolhem ao bolso do jersey. Só por segurança...
Para alcançar novamente a N222, mais uma curta mas inclinada subida. Daí para a frente 15km de rompe-pernas, com meia dúzia de subidas enganadoras. A paisagem é agora dominada pela Serra das Meadas que suporta a estrada e, do outro lado do vale do Douro, a brutal e esmagadora imponência da Serra do Marão. Vencida esta secção, estava na altura de descansar as pernas e o corpo na descida, aproveitando para contemplar a forma como algum património arquitectónico está a ser recuperado e bem integrado na envolvente.