O blog está um pouco atrasado porque o tempo não tem sido muito... mas sem pressa, o fórum continua a ser um óptimo local para colocar os relatos das voltas.
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Vamos então fazer aqui um pequeno parêntesis de off-topic acerca do treino.
A questão do treino é, tal como a forma de estar de cada um no ciclismo, algo puramente pessoal. Por isso, o que te posso dar é a minha visão das coisas e a forma como encaro o que faço, sempre que subo para a bicicleta. São por isso as minhas ideias, os meus preconceitos e, não os querendo impor a ninguém, são os pressupostos que vou seguindo ao longo destes anos de boas pedaladas.
Verdade universal no meu mundo: Não pedalo por sistema. Não consigo, não gosto, não tenho paciência para seguir planos de treino e, assumo, não faço muito esforço para isso. Pedalar tem de ser um prazer e não uma obrigação. Não me vejo a ter vontade de ir passear mas sair de casa para fazer séries perfeitas de fartlek nem me vejo a recusar uma jantarada com os amigos porque tenho de controlar o que como para me manter com o IMG "X" ou o peso "Y" .
Se me apetecer pedalar durante a semana, pego num dos meus circuitos de 30, 40 ou 50Km e lá vou eu girar as pernas. De igual forma, se me apetecer apanhar uma barrigada no Tatana ou no Sapo e mandar a bicicleta à fava, faço-o sem nenhum tipo de peso na consciência. E não raras vezes, muito por culpa das imposições profissionais, acabo por não sair durante a semana. Mas nem por isso baixo a fasquia para a volta seguinte.
Muitas vezes, por uma questão prática, refiro-me às saídas semanais como treinos. Mas na verdade não treino para nada. Até porque para o meu perfil de voltas, longas distâncias e muitas horas em cima do selim, não são treinos de hora e meia que vão produzir resultados palpáveis.
O que faço é queimar algum stress, sem nunca pensar em ciclos, séries ou algo que tenha a ver com planificação. Vou ao ritmo em que me sinto confortável nesse dia e esforço-me por melhorar os pequenos desafios que volta e meia apanho, como a subida da Assunção ou da Agrela ao cronómetro. Forço um pouco mais naquela recta ou invento naquela subida que nunca experimentei. Sei gerir o esforço consoante a pulsação, articulo isto com a cadência e pronto. Deve ser esta a forma mais avançada de gestão de treino que aplico.
Claro que compreendo os fundamentos, conceitos e benefícios do treino regular, orientado e controlado. E não deixo de admirar quem tem preocupações e disciplina para treinar como um atleta. Se eu tivesse essa disciplina, provavelmente a esta hora podia ter menos 10Kg, uns gémeos de fazer inveja e um poder de explosão 5x maior.
Mas para esses resultados teria de condicionar a minha rotina de uma forma que não me traria mais valia evidente. O que me interessa andar mais rápido, subir mais depressa e aguentar mais ácido láctico se não utilizo nenhuma dessas características nas minhas voltas?
Como já se escreveu no tópico dos percursos no Porto, na estrada ando a gasóleo... agrícola. Devagar, com eficiência e sem grande exuberância. Sou castigado com uma dose tolerável de sofrimento mas é também dele que retiro algum do prazer de pedalar. O topo ao fundo da rua deixou de ser interessante a partir do momento em que o ultrapasso com facilidade. Da mesma forma, qualquer uma das árduas subidas que já me fizeram deitar os bofes pela boca deixará de ter piada quando não custar a fazer.
O meu interesse é, cada vez mais, apurar a endurance e ignorar a velocidade pura. Aliás, a velocidade apenas me interessa na medida em que quanto mais depressa andar, mais quilómetros consigo fazer com luz do dia e, portanto, mais coisas bonitas posso ver.
E apuro a endurance com naturalidade a cada saída que planeio. E com tanta naturalidade que só semanas depois tenho noção de que em determinada volta ultrapassei obstáculos consecutivos de dificuldade elevada. Não porque tenha essa obsessão. Mas porque tenho um determinado grau de exigência na escolha das voltas que me leva a procurar a novidade, que vem de mão dadas com a dificuldade. E também porque sei que, atrás da dificuldade se esconde o prazer maior que retiro do ciclismo.
Presunção? Longe disso... especialmente porque há aqui colegas de fórum que realizam empresas ainda mais notáveis e que me deixam genuinamente invejoso, perante os feitos atingidos e os locais visitados. E muitos deles são referenciais para as voltas que vou dando.
Por isso, para mim não se trata de chegar rápido de A até B. Para mim trata-se de chegar de A até B passando por C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, V, W, X, Y e Z.
E faço por aproveitar e apreciar cada bocadinho da viagem...
O que o percurso tiver para me oferecer, ou o que me quiser atirar, lá terei de aceitar e ultrapassar. Não me adianta ser metódico em treinos perto de casa, quando procuro o incerto e o inesperado quando vou para longe...
Preciso por isso de um mínimo de preparação física como é natural. Essa já a vou tendo e vai-se apurando lentamente. Não comecei a fazer 150Km logo desde o primeiro dia mas quando tive de os fazer já tinha construído a base necessária ao longo de voltas de distância incremental. E quando me lancei para os primeiros 200 já tinha os 150 bem cimentados e assim será quando decidir atacar a barreira psicológica dos 250Km. Tudo tem um tempo e quando o tempo chegar, a preparação - que afinal de contas é feita no terreno - há de vir ao de cima.
Mas, cada vez mais, o que me interessa treinar é sobretudo a cabeça. E a cabeça treina-se in loco! Treina-se a meio da subida de 30Km, treina-se quando faltam 100Km para chegar a casa e há um momento em que as forças falham, treina-se durante o pico do calor e treina-se quando tenho os pés gelados. Até se treina nas descidas, quando normalmente as pernas têm um pouco de trégua. Porque é a cabeça que manda e no meu caso a cabeça manda sempre terminar e levar as coisas até ao final. Se não for mais depressa, será mais devagar. É isso que me move: Pensar em grande, executar e completar. Mas até nisso ainda sou um puto... e olharei sempre com admiração alguns exemplos de extraordinária força mental, como um relato que li há uns tempos de um ciclista que fez os 1200km do Paris-Brest-Paris numa bicicleta de carreto fixo! E são esses exemplos que me motivam e que me fazem olhar para o ciclismo desta forma própria.
Isto leva-nos ao ritmo a que as coisas se passam durante as minhas voltas. Quantas vezes paro durante uma volta de 150, 180 ou 200km? Dezenas! Paro para olhar para a paisagem, paro para tirar uma fotografia, para para tirar mais 5 fotografias, paro para comer qualquer coisa, paro na mercearia perante o olhar de espanto da velhota que me vende 3 ameixas. Subo devagar e a olhar para o lado, tento absorver o máximo possível daquilo que me rodeia e treino a cabeça a cada quilómetro para ir buscar energia para mais. As pernas, mais depressa ou mais devagar, acompanham as exigências.
Quando vou fazer essas distâncias não vou em nenhuma competição. Se demorar mais 2h a chegar a casa qual é o problema? Desde que olhe para o que fiz e fique satisfeito...
Em suma, a minha abordagem é completamente despreocupada, porque não há motivo para ser de outra forma. Tenho à minha volta demasiados exemplos de malta que vive obcecada com os treinos de terça e quinta, com a suplementação, os BCAS, os MegaPowerRecoverWhey e o camando, preocupados em fazer voltas de fim-de-semana a fundo com médias altíssimas e em pedalar como se o mundo acabasse amanhã. Respeito profundamente, mas dispenso bem essa pressão.
Por isso, se achas que preocupação com o treino e com o manter certos standards de rendimento te está a retirar o prazer de pedalar por pedalar, está certamente na hora de fazeres alguma ponderação. Há um tempo para tudo e a vida não é só bicicleta...
Boas pedaladas!