Ultimamente a vontade de relatar por escrito as voltas de bicicleta não tem sido muita. Talvez porque nos últimos tempo me tenho virado mais para a bicicleta de estrada e, apesar dos belos percursos que tenho feito, não achar que haja nada digno de relatar. Mas há. Na verdade o que tenho é preguiça. Vou então fazer um esforço porque este foi especial.
Um PIF é um "Passeio Informal do FórumCiclismo". Já se realizaram vários, em várias regiões. Este iria partir e chegar a Cinfães, bem na encosta da Serra do Montemuro. O trajecto seria da autoria do André, na sequência dum desafio lançado pelo Daniel. O mesmo Daniel que me tinha resgatado de casa às 7:30 para me dar boleia até Cinfães.
Estive para lhe enviar um SMS bem cedo a dizer que não contasse comigo. Bem me ia custar, que não gosto de falhar compromissos. A verdade é que, apesar de não ser meu hábito, tinha abusado um pouco num alegre jantar de família na noite anterior, onde o prato principal tinham sido favas devidamente regadas. Acordei a meio da noite, desconfortável. Julgo que até me doía a cabeça e tinha muita sede. Desesperado, fui à cozinha, peguei numa garrafa de bebida isotónica que tinha preparada para o dia seguinte e bebi-a quase dum trago. Voltei para a cama e comecei a transpirar abundantemente. Coloquei o despertador para as 6:00, 1:30 antes do combinado. Queria ter a certeza de que teria tempo suficiente para restabelecer as funções básicas do corpo antes que aparecesse o Daniel.
Tomei o primeiro pequeno almoço do dia com muita calma (havia de tomar outro mais tarde, já em Cinfães) e por ali fiquei ensonado à espera. O meu transporte foi pontual e recebido com alegria pelo Mestre, o cão cá da casa. A manhã estava agradável, ainda que um pouco ventosa. Tenho na memória que a viagem foi agradável mas não retenho pormenores do(s) assunto(s) de conversa.
Depois do tal segundo pequeno almoço lá nos dirigimos ao local de encontro. 9:00, o pessoal foi pontual. Não tinha dado grande atenção aos pormenores da convocatória e por isso não sabia quem tinha confirmado a sua presença. Eram poucos, estava a contar com mais. Um deles dirigiu-se a mim pelo nome de guerra como se fôssemos velhos conhecidos. "Desculpa... mas quem és tu?", perguntei. Afinal era o Fogueteiro. E eu que o imaginava como um tipo com 1m90, muito magro e moreno. Afinal era um ser de estatura perfeitamente normal e tom de pele igual ao de 95% dos portugueses (e pronto, agora, depois desta descrição, vai haver um monte de leitores desta crónica que não o conhecem a imaginá-lo parecido com o Zézé Camarinha...). Enfim, mistérios da nossa mente...
Alguns (Zé Nuno e Filipe) já vinham com as funcionalidades motoras bem despertas depois de 20km de descida já em bicicleta desde as Portas de Montemuro, onde tinham deixado o carro. No meu caso, que ainda só tinha acordado há 3 horas, a motricidade ainda estava um pouco presa para os 5km iniciais feitos sempre em descida. Mas a subida que se iniciou logo que passámos o Bestança havia de, aos poucos, começar a aquecer o corpo.
Estrada estreita e bonita, pelo meio das aldeias. Tirando alguma palhaçada do suspeito do costume, nada de especial para contar nesta secção. Mas com o passar dos kms começou a parecer-me familiar a paisagem. Eu já tinha andado por ali! (ver
aqui) A memória começou a funcionar. Para a esquerda havia um vale profundo e em frente, se bem me lembrava, a estrada não seguia. Só havia uma alternativa: à esquerda, para cima, em direcção à Gralheira. E assim se confirmou. Enquanto subia e reconhecendo à direita e à esquerda da estrada os montes e trilhos por onde já tinha pedalado. Tinha uma vaga ideia duma zanga entre o Tico e o Óscar e uma queda do Major... Lá para as bandas de Campo Benfeito vangloriava-me de uma das fotos que dava a conhecer o lugar no Google Earth ser da minha autoria.
Lá chegámos ao primeiro dos três topos que haviam de caracterizar o gráfico de altimetria do percurso. Um cruzamento de várias estradas que se dirigiam para localidades que não se viam no horizonte. O André, o nosso guia, apontou-nos uma delas. Admito que não foi muito do meu agrado. Uma longa descida de inclinação bem acentuada e piso rugoso. Queria gravar o percurso e o GPS, com alguma folga nas pilhas, ia constantemente a desligar-se com a vibração. Além disso tinha-me desleixado com a afinação dos travões e pelo meu cérebro passavam imagens de várias coisas que podiam correr mal. Enfim, sou um cagarolas. Também gosto de descidas rápidas mas daquelas em que temos de pedalar. Despenhamentos controlados não é muito a minha onda.
E estávamos em Resende, localidade que nunca tinha visitado. Parámos num café/padaria e aproveitei para regular os afinadores dos travões e tentar eliminar a folga das pilhas. Não havia muita escolha para comer e, talvez por isso, a paragem também não foi demorada.
Regressámos à estrada e às subidas. Formaram-se de imediato dois grupos. Acelerei um pouco e passei para o da frente, cujo ritmo me agradava mais. Aquele início de subida fazia-me lembrar a Assunção. Mas foi de pouca dura. De repente a inclinação disparou. Ao princípio tive esperança que fosse apenas uma rampa mas logo compreendi que aquela ia ser a verdadeira subida que me aguardava. Sem força nem coragem para os tentar acompanhar, tomei a sensata decisão de procurar o meu ritmo e deixar que os meus três companheiros (Filipe, Zé Nuno e Daniel) fossem embora aos poucos.
Não sei quanto tempo nem quantos kms durou aquilo. Estava resignado, o caminho era para cima e era para aí que tinha de ir. De vez em quando olhava para trás à espera que alguém vindo de trás se juntasse mas não via ninguém. Aos poucos a coisa lá suavizou e comecei de novo a avistar os da frente, que tinham refreado o ritmo à minha espera. Alguns kms de tréguas que até deram para conversar mas o Filipe e o Zé já iam contando barbaridades sobre os derradeiros 2km da subida. Que realmente eram duros mas nada que não se faça. No topo (Alto de S. Cristovão) tivemos de aguardar algum tempo pelo restante pessoal que foi chegando aos poucos. Tempo para mais alguma galhofa e bastantes fotos.
Depois de alguns kms no planalto, voltámos a descer. Mais uma vez o piso nem sempre era o melhor e o GPS lá se ia queixando. Parámos na rotunda duma vila qualquer. "Onde estamos?", perguntei. "Castro d'Aire", foi a resposta. Continuámos a descer. Estava a reconhecer a estrada. Em tempos, num regresso em trabalho de Viseu vindo pela N2, cheguei a Castro d'Aire e apontei aquela estrada. Tinha curiosidade em reconhecer o caminho dali até Arouca. Mas, vendo como se embrenhava no vale, voltei para trás ao fim de 2km e continuei na N2. Na altura achei que ia andar por ali demasiado tempo perdido e demoraria muito a chegar a casa. E agora estava a enfiar-me no mesmo buraco... de bicicleta. Irónico.
Sintomático de que algo de especial estaria para acontecer era nenhum dos presentes conhecedores da região estar a perceber qual a ideia do guia em trazer-nos para ali. "A não ser...", disse a certa altura o Filipe, "...que seja para subir Sobradinho!". "Como é?", perguntei-lhe. "Pior do que devia!", foi a resposta.
E era mesmo por lá. Mesmo sem grande interesse fotográfico não pude deixar de registar o início da subida. Depois... bom, depois foram uns 3kms de autêntica parede. Além da inclinação, o calor também se fazia sentir e o pessoal, ziguezagueando subida acima, lá ia procurando alguma sombra na berma. Levava a jersey aberta e os braços encharcados em suor. Passei pelo Fogueteiro que resmungava sabe-se lá com quem ou com o quê. O Gil, uns metros à frente, tentava animá-lo "Aqui já acalma...". Tratava-se dum eufemismo, acalmava talvez dos 15% para os 10%...
Apesar de tudo estava a adorar. Quando conseguia olhava para trás e constatava que ainda há uns minutos estávamos tão lá no fundo. E ainda havia tanto para subir. Que sorte a do pessoal daquela região em ter ali à mão de semear para escalar verdadeiras montanhas, comparadas com as nossas pequenas colinas lá do burgo onde moramos. Cansado mas com um sorriso de orelha a orelha juntei-me de novo aos três habituais da frente que tinham parado para aguardar em Cetos, agora que a escalada estava mais civilizada. Subimos mais um pouco mas acabámos por esperar para reagrupar todo o grupo uns kms mais à frente.
Estávamos agora perto da Faifa. Os conhecedores diziam que já não faltavam muitos kms para terminar a subida. A certa altura começamos a deparar-nos com dezenas de carros estacionados na beira da estrada e alguma animação mais à frente. Olha... às tantas é pessoal para nos ver na contagem de montanha. Afinal não, tratava-se duma espécie de feira ou arraial no meio da encosta, com comida, bebida e lutas de bois.
Alguns aproveitaram para se abastecer enquanto o Daniel se entretinha a promover o nosso evento junto do encarregado pela animação sonora do recinto. E foi nessa paragem que me aconteceu o momento de fraqueza do dia. De repente, sem que nada me fizesse suspeitar, comecei a sentir as forças a irem embora. Decerto provocado pela paragem. As Portas de Montemuro já estavam à vista, uns kms acima, e avisei o pessoal de que iria indo nas calmas, que entretanto me apanhariam. E lá fui. Mas, julgo eu, que naquela altura devia inspirar dó a quem se cruzasse comigo. Aquilo não era pedalar, era sobreviver. Entretanto o Daniel, vindo de trás, juntou-se mas também ele dizia já estar a necessitar de subsídio.
Quando chegámos à estrada nacional a inclinação amainou e permitiu ao organismo recuperar aos poucos a sua vitalidade. Segundo o André, as estradas nacionais, devido aos camiões, nunca podem ultrapassar os 8% de inclinação. É por isso que ele prefere as municipais, que não têm essas limitações... Já com o Filipe ao nosso lado ainda ensaiei um sprint para as Portas que se esgotou em 100m quando ainda faltavam 300.
Tempo apenas para a foto de família e ala que se faz tarde para Cinfães, que nos aguardavam agora 20km de descida em bom piso. Juntámo-nos eu, o Daniel e o Filipe, trabalhando à vez estrada abaixo. O Zé Nuno ainda por lá apareceu mas depois deixou-se ficar. O Filipe também levantou o pé às portas de Cinfães. Diz ele que teve um furo, dizemos nós que não teve pedal.
Perguntará o leitor atento que diabo foi o Filipe fazer a Cinfães se, no início deste texto, tínhamos dito que o carro dele estava lá em cima, nas Portas. Simples: foi buscar o casaco. E o Zé Nuno, o parvo de serviço, foi com ele.
Falta ainda falar duma personagem, o Mikka. Tinha vindo com o Pedro Lobo mas, devido a afazeres profissionais complicados nas últimas semanas, a sua forma, senão a física, pelo menos a mental, estava muito lá por baixo. Assim logo aos 20km abandonou a alcateia e foi dar uma volta sozinho acabando por aguardar pacientemente ao longo do dia pelo nosso regresso onde vinha o Pedro, a sua boleia de volta a casa.
Quanto a mim e ao Daniel, despedimo-nos do resto do pessoal, metemo-nos no carro e regressámos a casa pelo mesmo caminho, recordando os acontecimentos do dia. Ainda parámos para comprar umas caixas de cerejas de Resende, na esperança que isso pudesse acalmar a fúria das nossas companheiras pelas horas impróprias de regresso. No dia seguinte vi caixas semelhantes à venda numa rotunda de Gondomar.
Restantes fotos,
aqui