Pedalar naquela época, anos 80, era maravilhoso. Havia pouquíssimos carros nas ruas e os espantados automobilistas tinham um cuidado redobrado com aqueles loucos. O prazer de sair à rua a pedalar uma bicicleta resumia-se praticamente a dar a volta ao bairro e, às vezes, arriscar uma valente dor de pernas acompanhando o grupo do meu pai, até ao Douro, à barragem e voltar. Um mini-pelotão de ciclistas sem prática reunia-se em frente a minha casa e pedalava horas a fio. No dia seguinte estávamos de rastos mas era uma ressaca saborosa. Era o primeiro dia das férias grandes.
Eu era como as minhas bicicletas, rijo como o aço. A minha primeira "bicla de corrida", uma Vilar pesadona, nela eu simplesmente perdia a noção do perigo e a busca de adrenalina algumas vezes não encontrava limites. Muitos tombos ficaram por contar, mas o primeiro que me marcou o corpo e a alma foi numa das últimas semanas de férias da escola.
Pedalávamos a todo o gás, no luscofusco, num despique irracional à volta do bairro. Na rua oposta à minha, ultrapasso o meu amigo Ernesto com o foco de estar à frente antes da curva. Mas o animal não me deu a mínima hipótese. É que nem o enxerguei quando saltou para a minha frente, vindo da esquerda por entre os carros estacionados. Quando dei por ele já a roda lhe acertava em cheio no lombo. Desamparado, caí sobre o meu braço e coxa direita que ardiam. Do cão só lhe ouvi um estridente ganido de dor. Estatelado nos paralelos com a bicicleta em cima de mim, surge o Ernesto, esbaforido, com as seguintes palavras de encorajamento: “Xiiii Paulo, até fez faísca!!!”.
Invariavelmente, esse era o meu estado de espírito, com o corpo, aqui e ali, tatuado de mercurocromo.