Ultimamente tenho andado um bocado desligado do fórum. Os temas técnicos (equipamento, nutrição...) não me entusiasmam pelo que só por aqui apareço a espreitar quando há rumores de que o alguém andou por locais interessantes e tem algo para mostrar, o que na maior parte das vezes é o André. O que é egoísta da minha parte pois ocasionalmente também tenho algo que valeria a pena relatar mas deixo-me vencer pela preguiça. Vou ver se me redimo um pouco com a participação neste tópico.
Tudo começou com uma mensagem do Daniel "Kezia" a perguntar se ia ao passeio.
-Que passeio? - contrapus.
-Do Duchene. Vai ver ao fórum.
-Logo à noite vejo isso.
E assim fiz. O tópico já tinha sido iniciado há algum tempo pelo que me dediquei a lê-lo do princípio ao fim, não fosse perder alguma informação importante. 14 páginas! 14 páginas que tive de ler onde se destacava a "produtividade" dum tal Lopes. Lá filtrei aquilo. Ok, gostava do espírito da coisa. Só não gostava da hora de partida. O meu organismo tem uma inércia terrível, depois de adormecer, e o facto de não me conseguir habituar a deitar cedo não ajuda nada. Mas o único problema era não ter transporte. Há uns anos atrás alguém registado num fórum sobre estes temas tinha como característica pessoal
"(...)não gosto dos entusiasmados até à última da hora que depois desistem por pormenores(...)". Nunca mais me esqueci disso e partilho desse sentimento, por isso limitei-me a informar o Daniel que não contasse comigo e continuei sem dar sinais de vida no tópico. Entretanto as coisas evoluíram, o Gilberto "desidratou" uma boleia para o pessoal aqui da zona e pude, finalmente e com grande alegria, confirmar a presença.
Era suposto ser apanhado em casa por volta das 6:00. Devido à tal inércia coloquei o despertador para as 5:00 e levantei-me às 5:15. Tinha 45min para estabelecer todos os contactos entre o cérebro e as extremidades nervosas do corpo, tomar o pequeno almoço e fazer a higiene pessoal. Não sei se para a maioria isto seria tempo suficiente mas pelo menos para alguns seria mais que suficiente. Para um tipo como eu são necessárias pelo menos 2 horas para esta operação complexa de acordar. Compreenderão assim melhor o pânico que me invadiu quando o telemóvel toca às 5:21:
-Pedro, é o Gilberto, 'tamos em Covas: tens 20min!
-Mas... mas...
Já tinha desligado.
Felizmente tinha tudo relativamente bem preparado e só tiveram de esperar por mim 45s. A viagem foi tranquila, com uma pequena pausa nos arredores de Amarante para reforçar o pequeno-almoço e satisfazer alguma necessidade fisiológica. A conversa foi variando entre o segundo tema favorito para gajos que gostam de bicicletas e o tema favorito para qualquer gajo. No céu um ponto luminoso destacava-se no céu a Leste. Era Vénus, este mês no auge da sua luminosidade. Talvez um bom presságio para o dia que nos aguardava.
O pessoal foi extremamente pontual. Julgo que a maior parte até chegou antes do líder, que parece ter adormecido (logo ele, que se levanta amiúde às 4 da matina para pedalar). Ainda havia quem esperasse que ele se descaísse com mais informação sobre o percurso mas tal nunca chegou a acontecer. Também desconfiávamos que o Daniel possuía informação privilegiada, como se veio a confirmar logo no briefing inicial, mas o malandro nunca se descaiu e ainda me lixou. Ponderava eu levar uma mochila às costas com algum alimento mais substancial e diz-me ele que não valia a pena, que levasse apenas o habitual das minhas voltas. Confiei e assim fiz. Grande asneira! Devia ter seguido o conselho do André. Cafés não abundavam mesmo por aquelas paragens e os que havia tinham pouco para oferecer.
O André começou por fazer um briefing, basicamente apelando ao bom senso. Mais uma pausa para alguns tomarem a sua dose de cafeína e outra pausa para a foto de grupo. Finalmente começámos a pedalar. Seguimos lestos pela margem esquerda do Douro abaixo, distraindo os vindimadores da sua labuta. Não tardou a chegar a primeira "zona de insultos" mas o pessoal ainda estava fresco e a beleza da paisagem ia-nos absorvendo os sentidos.
Senti algo na roda traseira. Furo! Irra, logo hoje que estava acompanhado, lá vai o pessoal ter de ficar à minha espera. Maldito sejas, Vénus, que já me traíste. E ainda estávamos no início, nem nos tínhamos aproximado dos caminhos complicados. Toca a trocar a câmara. Era a única. Depois apenas podia contar com remendos ou com a solidariedade do pessoal, caso voltasse a furar. A inspecção ao pneu revelou a presença duma limalha de ferro. Comecei a dar a bomba mas a pressão do pneu tardava em atingir o valor pretendido. Algo se passa... seria da bomba? Seria outra impureza no pneu? Voltámos a retirar a câmara. O Medroso verificou também o pneu, experimentámos com a bomba do Parada mas a câmara teimava em não ganhar pressão. O Gilberto lá cedeu uma das câmaras dele enquanto aproveitava para criticar o controlo de qualidade da Decathlon. Um dia destes vou investigar que raio se passou com a câmara, que retornou à bolsa do selim. Voltámos ao caminho. Estava com o "síndrome de quem acabou de furar" e espreitava a roda de trás a cada grão de areia que pisava. Agora imaginem quando numa curva passámos por baixo dum castanheiro que largava os seus ouriços no asfalto.
A estrada agora subia a sério e o grupo desfazia-se, trepando cada qual ao ritmo a que se sentia mais confortável. Curvas e contra curvas proporcionavam bons "spots" para a foto e o pessoal ia aproveitando. Não há subida que não tenha fim, embora às vezes pareça que não, e no topo Contadores e Arus reuniam-se para partilhar as glórias dos instantes anteriores. Mais um briefing do André atendendo ao que se iria seguir, o tal troço de "sterrato". Vou ser sincero, não gosto de sterrato. Para BTT é demasiado monótono e pneus de estrada neste piso não são lá muito eficientes, além do risco acrescido de furos. Mas o "sterrato" permite-nos progredir até locais onde não chegaríamos de outra forma e tem tendência para proporcionar fotos de grande beleza. Ah, e nunca tinha furado no "sterrato". E também não foi desta. Mas fiquei aliviado quando acabou... porque não sabia o que ainda havia de aparecer mais para a frente.
Podia escrever este texto orientando-me pelo mapa do percurso que me ajudaria a recordar mais pormenores mas optei por não o fazer. Está a ser escrito apenas de memória pelo que não esperem que recorde todas as estradas ou outras referências geográficas que tenhamos cruzado. Como o André tinha conseguido levar avante a manutenção do secretismo do percurso e não sendo este o meu quintal, andava por ali um pouco desorientado. A certa altura tinha-me parecido reconhecer a paisagens de duas incursões de BTT pela região de Lamego que havia feito em tempos. Mas quando chegámos à N2, em Bigorne, reconheci imediatamente o local. Tinha sido ali que há uns anos, num dia bastante frio, tínhamos deixado os carros e partido para uma incursão memorável de BTT pela serra de Montemuro. Pelas histórias que vou conhecendo criei a ideia de que a N2 deve ser uma estrada fascinante e deu-me um especial prazer aqueles poucos kms que ali percorri trocando tranquilamente palavras com o André na traseira do pelotão.
Esta terá sido a parte mais convencional do percurso. Algumas boas subidas mas com o piso, tanto quanto recordo, em bom estado. Nestas alturas a mente vai divagando. Já vos aconteceu acordar de manhã com uma música e não conseguir tirar aquilo da cabeça durante o dia todo? Era mais ou menos o que me estava a acontecer cada vez que pedalava atrás do Valter Hugo Costa: olhava para as patas do "tripod gorila" a saírem-lhe da jersey e não conseguia parar de me tentar recordar duma música qualquer dos 90s que rezava "ain't no monkey business". Ao longo do percurso fui tentando conhecer e avaliar os restantes convivas, visto que havia alguns que ainda não conhecia (pelo menos pessoalmente). André, o organizado; Pedro Lobo, o sereno; Kezia, o desbocado; Gilberto, o faroleiro; Klaser, o stressado; Alexandre, o rápido e, já agora, eu próprio, Indy, o trombudo (não vá algum dos anteriores não gostar do adjectivo que lhe atribuí, fica aqui a avaliação em causa própria). Os outros não conhecia. Luís, que é aqui quase vizinho, um tipo que pedala muito e fala pouco. É daqueles com quem gostava de voltar a pedalar brevemente. Afonso, uma espécie de meio termo entre o Kezia e o Gilberto mas mais... amadurecido. Como não conhecia a peça e não sabia se seria a brincar ou a sério que dizia certas coisas estive quase para o mandar aquela parte numa ocasião mas depois percebi que não era defeito, era feitio. Depois tínhamos o Faísca, uma espécie de "wingman" do Afonso, formavam uma dupla estilo Batman&Robin mas em ruidoso. De tal maneira que quando alguém berrava "furo!" ficava sempre na dúvida se tinha realmente acontecido algo ou se tratava apenas de mais uma demonstração da sua animação. Tínhamos ainda o Medroso, um daqueles tipos delicados a quem até um pai austero é capaz de entregar a filha virgem. E o Daniel, pois nestes passeios tem de aparecer sempre um gajo que "anda p'ra c***lho". E do Lopes, que dizer? Pá... foi como aquelas contratações do futebol que prometem muito. O homem fartou-se de contribuir para a animação do tópico de promoção do evento, o pessoal ia preparado para a sequela "in vivo"... e o homem quase não abriu a boca o dia todo! Pessoalmente senti-me defraudado. Ou aliviado. A presença do Parada e do Bunny foi efémera pelo que, tirando as meias de compressão do primeiro que o Kezia se encarregou de comentar em tempo devido, não deu para formar uma opinião.
Qualquer passeio de bicicleta que se preze tem de visitar uma santa. Qualquer santa que se preze tem de ficar num alto e a Sta Helena é uma dessas. Enquanto uns profanavam o local de culto com obscenidades e libertação de gases, quiçá provocada pelo diferencial de pressão imposto pela altitude, outros tentavam desesperadamente capturar para dentro dum CCD 1/2,3 a beleza que os seus olhos apreciavam. Pessoalmente, por brincadeira, tentei fazer um pouco de geocaching mas já é hora de me convencer que se trata duma actividade pouco compatível com sapatos de ciclismo.
Mais uma descida íngreme, mais um furo, julgo que desta vez foi do Medroso. E mais uma subida. Chegámos ao Alvite, terra de tendeiros, onde as facas dão tiros?? Tenho de investigar essa história. Pela dimensão da localidade talvez por ali se conseguisse arranjar algo mais substancial para comer. Infelizmente alguns de nós optaram pelo estabelecimento com menos variedade e quando nos apercebemos já era tarde. Valeu-me a solidariedade do Kezia que tinha ido buscar pão e fiambre a uma mercearia vizinha, senão tinha ficado lá a invejar a lata de conserva de milho do André. E nem sequer aprecio aquilo.
Lá arranquei, apesar de não suficientemente reconfortado. Estávamos no concelho de Moimenta da Beira
"(...)Ó Moimenta, linda Moimenta, eu adoro tuas características não só geográficas mas também sócioeconómicas(...)"
Desconhecia que se tratava duma região produtora de maçã e fiquei encantado com os pomares carregados de frutos dum vermelho quase irreal. Desde criança que não via maçãs com um aspecto tão apetitoso. Estive tentado a regressar lá no dia seguinte, com a família, para uma visita mais atempada mas outros compromissos e a distância acabaram por gorar o plano. Por agora.
Os kms foram-se desenrolando até mais um briefing do André para apelar ao bom senso. A descida que se seguia era complicada e exigia alguma atenção que podia ser desviada com a beleza da paisagem. Além da inclinação o estado do piso era bastante mau. Lá fomos descendo, uns mais afoitos, outros mais cautelosos e voltou a ser o Pedro Lobo o sorteado para mais um furo, ele que já tinha tido esse azar num fase anterior do percurso. Resolvido o problema continuámos com cuidados redobrados mas sempre com um olho no impressionante vale que se estendia à nossa frente. Até que a descida terminou e entrámos naquele que me atreveria a eleger como o troço de estrada mais bonito do percurso. Alguns kms de estrada estreita, serpenteando na encosta pelo meio do arvoredo, o mesmo arvoredo que me roubou a luz que necessitava para uma foto em condições quando resolvi parar o registar.
Granja do Tedo foi a localidade que se seguiu. Já tinha ouvido falar da beleza do local, através dum amigo que tem família por aquelas bandas e que já andou por lá a fazer umas caminhadas. Sempre achei piada ao nome. Soa-me mais a brasileiro que a português, esperava que esse fosse o nome duma fazenda do sítio do pica-pau amarelo e não duma aldeia da Beira Alta. Gostei especialmente da subida que se seguiu. Sentia-me confortável por ali acima. Parecia que estava em casa, na Assunção, com um sol agradável a aquecer-me o corpo e fazendo conversa de ocasião com o Gilberto que seguia ao meu lado. O problema foi mais à frente, quando parámos para reagrupar e nos apercebemos que faltava o Valter Hugo Mã... pôrra, Costa, estou sempre a trocar-lhe o nome com a outra personalidade. O homem mete-se em empreitadas de 1200km e dá com o destino mas enganou-se à patrão no "promenade do Duchene".
A espera foi longa, aproveitada para discutir preparação física e rolhas de poço. Mas o homem lá apareceu graças ao avanço tecnológico que são as comunicações móveis. Só que passados 200m da junção... furo! Precisamente do VHC. Ok, sei que me estou sempre a queixar. O meu organismo não gosta de se levantar cedo, não gosta de chuva... e não gosta de paragens frequentes. Se fosse um tipo rápido diria que era como os F1, com embraiagem apenas para dois arranques. Ao longo do dia as paragens e arranques tinham sido mais que muitas e, finalmente, deu-me o Bonk! Estiquei os braços, baixei a cabeça e foi com este ar de sofrimento que fiz o que restava da subida enquanto tentava encontrar nos restos de açúcar que transportava nos bolsos algo que me espevitasse.
Felizmente que desse topo até Tabuaço e depois até lá abaixo à margem do Douro a estrada só descia e deu para reactivar os sistemas. A descida teve até alguma diversão pois o piso era bom através daquele serpentear e convidava à velocidade. Cá em baixo ainda comprei bilhete para o expresso que ia para a Régua mas alguém atrelou mal o comboio que foi perdendo carruagens pelo caminho, sendo eventualmente uma delas a minha. Melhor assim, tentei mentalizar-me, parece que lá a frente já havia quem fosse com a visão turva, eu pelo menos pude apreciar devidamente os movimentos no rio, com os seus cruzeiros turísticos e as manobras nas comportas da barragem.
E pronto, lá acabaram por chegar todos, felizes e contentes. Despedimo-nos e foi cada qual para sua casa. Fim.
...
Ok, não foi bem assim. Ainda aconteceram mais umas coisitas. Mas foi tão bom, quase obsceno, que é melhor não contar aqui senão quem não foi também vai querer. Quanto a isso (e ao resto) já agradeci a quem de direito.
Depois sim, as despedidas, ou melhor, um até à próxima.
Voltámos ao nosso transporte e regressámos a casa conversando sobre o segundo tema favorito dos gajos que andam de bicicleta e sobre o tema favorito dos gajos em geral.
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Nota: seleccionei algumas fotos para ilustrar este texto. Não sei se são as melhores ou as piores, são as que considerei mais apropriadas. As restantes estão
neste link. Se gostarem de alguma, estejam à vontade.