Petite Force: Festas, feriados e regresso à rotina.
Sábado: Um bocadinho de Hitchcock...
Com a onda de calor que nos últimos dias assolou o país, mandou a prudência, conjugada com a agenda preeenchida, que se cumprissem apenas os serviços mínimos no que toca a pedaladas por estradas desertas e fascinantes.
Assim, dos 4 dias disponíveis para pedalar no final da passada semana, consegui reservar apenas a manhã de Sábado, sendo que depois ainda tive o bónus de conseguir ir desentorpecer as pernas no Domingo de manhã.
Sábado estava convidado a pegar na batuta e ir apresentar estradas desertas e fascinantes para os arredores de Alvarenga a um grupo de amigos curiosos com o que se escondia para lá do rio Douro.
Com o limite de tempo bastante apertado, já que havia quem tivesse de estar pronto a trabalhar às 2 da tarde, não me poderia esticar muito nos quilómetros, tendo em conta também que a orografia da região não é propriamente macia o que atrasa ainda mais a progressão.
Candidato natural a percurso de eleição por aquelas bandas seria o bloco central do PIF*U, que integrava a zona de Castelo de Paiva, o vale do rio Paiva e as aldeias do vale, fazendo depois a escalada da encosta da Serra do Gamarrão, para a espectacular descida até Paradela.
Obviamente que não conseguiria simplesmente replicar o percurso sem acrescentar nada de novo e, portanto, não deixando créditos por mãos alheias, desenhei um pequeno aperitivo de Montemuro, com um desvio que subiria parte da encosta do maciço até à aldeia de Vilar da Arca, para depois retomar a N225 uns escassos 2km à frente do ponto de desvio inicial.
Sem ter de me preocupar com a logística só tive de esperar que a Toyota Hiace bege me fosse buscar a casa, para carregar as trouxas e rumarmos ao Torrão, base logística da passeata.
Às 08h00 faziam-se as primeiras pedaladas em cima da ponte Duarte Pacheco, em direcção a Entre-os-Rios. Ritmo calmo e descontraído, a marcar a toada que se queria para o restante da manhã.
Atravessada a nova Hintze-Ribeiro seguimos a N224 em direcção a Castelo de Paiva, comentando pelo caminho a tortura que seria, há alguns anos, fazer a viagem entre Resende e o Porto ou simplesmente ir da travessia do Douro até ao centro de Castelo de Paiva... as variantes vieram mudar tudo isso e agora, felizmente para que gosta de apreciar as velhas estradas nacionais a pedalar, estas são sempre preteridas em favor das alternativas mais rápidas, o que garante um baixo volume de tráfego automóvel e mais sossego.
Depois de abandonar os arredores de Castelo de Paiva entra-se, de facto, noutra dimensão. A relativa urbanidade dá lugar a um cenário bem mais rural, natural e até agreste, com íngremes e escarpadas encostas a fecharem-se sobre nós, precipitando-se em direcção ao rio Paiva que, quase impoluto, se passeia lá em baixo.
Agora os automóveis são uma verdadeira raridade, a ponto de passarem menos de dez por nós, em todo o percurso que se seguirá, até bem depois de Canelas, já do outro lado do rio. Pedalamos aos 4 em linha na estrada, aproveitando o deserto de veículos motorizados que por lá se vive.
Continuando a despercebida subida (que mesmo assim ultrapassa a dezena de quilómetros) e distraídos que estávamos com a envolvente, rapidamente chegamos ao vale das Aldeias. Chamo-lhe assim porque neste enfiamento do vale do rio Paiva, existem uma série de aldeias plantadas ao longo da estrada nacional e outras, mais acima, implingradas na encosta. Vila Viçosa, Faval, Aziboso, Vila Chã, Vista Alegre, Pereira, Nespereira, Pertença e Lourosa sucedem-se em apenas 11Km de estrada
Em Faval arranca o desvio para visitar um dos patamares da encosta do Montemuro, o último mais acessível antes da serra se erguer definitivamente acima dos 800m para não mais os largar.
Foram 10Km de subida constante, primeiro para Norte e depois para Este, que rapidamente nos colocam acima dos 700m e com uma vista deslumbrante e privilegiada: primeiro sobre todo o vale do rio Paiva e depois, à passagem de Sarabagos, uma impressionante panorâmica que abarca o Rio Douro desde Entre-os-Rios até bem acima de Cinfães. Fantástico!
Vilar de Arca marca o final da ascensão e daí se pode escolher fazer a ligação até à N222, do outro lado da encosta, ou voltar para o lado de Alvarenga, encetando a descida do Montemuro.
E que descida! Que descida! O que se segue é perigosamente entusiasmante, mesmo antes de efectivamente começarmos a descer, já que a vista do percurso que nos espera é divinal, com uma enorme recta que serpenteia ligeiramente encosta abaixo e que desde logo anuncia o que se seguirá. Para terem uma ideia, vamos descer em 5Km, o que subimos em 10!
O início foi feito ainda um pouco anestesiados com o magnífico tapete que à nossa frente se desenrolava e a recuperar do susto de ter visto um dos cotovelos da estrada para Ervilhais, que surgia pendurado uma centena de metros acima, na íngreme encosta.
Mas eis que... o sangue na guelra que me acompanhou não se conteve e, quando eu encabeçava a mais de 65Km/h fui passado como se parado estivesse! Há registo de conta quilómetros a marcar 83Km/h mesmo antes de entrarmos na zona de ganchos do final e não era o chefe de fila! Muita prudência se aconselhava porque as rampas eram convidativas mas logo seguidas de fechadas curvas em que mesmo os M5 se tinham de aplicar para segurar os 100Kg de massa rolante. Apesar da ajuda da gravidade a minha prudência valeu-me o último lugar na Cavalgada das Valquírias do Montemuro...
No final da descida a satisfação era por demais evidente, não só pelo sorriso rasgadíssimo na cara de todos mas também por inúmeros impropérios que, naquela altura, serviram para apelidar carinhosamente a descida!
Não demoraria muito mais para nova descida se fazer, desta feita o tesouro que se esconde entre Donim e Espiunca e que foi um dos ex-libris do PIF*U. Esta, muito mais técnica, não permite tanto entusiasmo, mas é muito mais intimista e leva-nos para um desconhecido ainda mais místico e inusitado: a travessia do rio Paiva, em Espiunca.
A ponte de Espiunca é um extraordinário pedaço de isolamento. Ali estamos encaixados entre as íngremes encostas do Montemuro e da Serra do Gamarão e tudo o resto está longe, distante e numa dimensão aparte. O aconchego daquele pequeno pedaço de betão e paralelo é difícil de explicar, mas continua a ser dos sítios mais pacíficos onde já tive oportunidade de passar.
Misticismo aparte, the show must go on e a Lei de Murphy é extremamente clara nestes casos: Depois de uma importante descida e da travessia de uma ponte segue-se, invariávelmente, igual subida. E este caso não seria excepção. No nosso caminho tínhamos agora a Serra do Gamarrão e a longa subida da M505 por Canelas, ao encontro da N326 que, praticamente sem descanso, completa a ascensão à crista da Serra.
Mas antes, depois de 12Km de implacável subida, um último par de rampas fazem disparar as percentagens de inclinação para bem perto dos 20%, e esgotam ainda mais os aventureiros, já há muito espezinhados sob um sol abrasador.
Porém, a conquista é bem sucedida, e lá em cima tudo se esquece. A visão é magnífica, e as serras, montes e topos são incontáveis. Por muito que se espreite as rugas do terreno num mapa no computador, só estando lá se tem a real noção de como esta zona, habitualmente descurada, esconde inúmeras pérolas para os amantes de um carrocel asfáltico de exigentes subidas premiadas com deliciosas descidas.
E deliciosa é a descida para Paradela pela M1138. Apesar de todos os pensamentos já estarem na paragem para o abastecimento, especialmente líquido, no simpático café/mercearia à entrada da povoação. Ainda assim não deixamos de apreciar o magnífico carrossel que nos leva a espreitar consecutivamente, ora à esquerda, ora à direita, os dois vales que se formam graças à Serra do Gamarão com o vislumbre da N224 de um lado e da N225 do outro... Um regalo numérico consecutivo!
Um pouco de massagem à entrada de Paradela, atravessando a velha carvoeira de Palmira Ferreira Soares, que resistiu à colocação de novo asfalto e, por isso, obriga a cuidados redobrados. Ainda assim, permite uma mirada ao processo de fabrico de carvão vegetal, ou pelo menos à sua face mais visível, os fornos.
Estacionadas as montadas à porta, entramos no café, quintuplicando, assim de repente, a população daquele estabelecimento. À admiração da proprietária em receber tão inusitados visitantes por aquelas paragens seguiu-se um segundo de reflexão e um "Ainda há pouco tempo estiveram aqui uns colegas seus, lembro-me bem!". Não tardei a completar o seu raciocínio com a confirmação de que lá tinha estado a 1 de Maio com os participantes do PIF*U e que agora tinha vindo mostrar a outros amigos, os encantos daquelas estradas recônditas, retribuindo a hospitalidade.
De sandes de presunto, coca-colas e cerveja traçada servida em geladas canecas de metal se fez o divinal lanche e, assim se fintou, ainda que por pouco tempo, o tórrido calor que nos fustigava desde o vale das Aldeias, há largas dezenas de quilómetros atrás.
Entre um convite para a festa do Vinho Verde daí a uma semana e as festas da aldeia no fim-de-semana de 9 e 10 de Julho, despedimo-nos, prometendo voltar sempre que por aquelas bandas se pedalasse.
Permitisse o tempo e teríamos seguido a N224 para sul, apanhando mais umas estradas secundárias até Oliveira do Adra e daí de volta a Torrão. Mas os minutos eram contados e estava na hora de encetar o regresso directo ao ponto de partida.
Tomamos então a direita, em direcção a Castelo de Paiva, seguindo o trajecto original da N224, pelo centro, em paralelo, descendo depois à nova ponte Hintze-Ribeiro, cumprindo agora no sentido inverso e a descer, os quilómetros iniciais do passeio, percorridos horas antes.
Chegada com mais 89Km de asfalto gourmet calcorreados. A satisfação evidente e generalizada. Ficou desde logo expressa a vontade de repetir a experiência, num outro cenário idílico. De minha parte só tenho a elogiar a forma como o espírito proposto foi escrupulosamente cumprido: apesar de termos entre nós alguns pares de pernas com rotina de competição, neste dia deixaram de lado os galões para apreciar o prazer de pedalar... por prazer.
Regresso a Valongo de janelas abertas e com o vento a bater na cara, ao som do característico roncar de proximidade do motor da Hiace. Sobejava a sensação de contentamento e a certeza de uma manhã de ciclismo muito bem passada, a compensar completamente a ausência de mais ousadas aventuras...
(A minha máquina ficou na Toyota Hiace a dormir e por isso ainda espero por uma foto de telemóvel de um dos amigos que foi comigo, para ilustrar o passeio...)
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Domingo: Desentorpecer ao amanhecer
Tive oportunidade de descomprimir com uma volta em ritmo muito desanuviado, em circuito entre Valongo e a Trofa, usando as estradas mais interiores.
Ida por Alfena, Água Longa, Camposa e Trofa, sendo o regresso pela N14, Carriça, São Romão do Coronado, Agrela, Sobrado e finalmente Valongo. Perfil muito simples mas, ainda assim, totalizou 750m de acumulado positivo.
Nada de especial a assinalar em 60Km cumpridos bem cedo, pela fresca, o que permitiu estar a arrumar a bicicleta um bom pedaço antes das 11 da manhã, hora em que o sol já se anunciava implacável, neste que foi o dia mais quente do ano.
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Terça-Feira: Dia municipal da talega
Ontem queria fazer uma volta mais intensa do que o normal, focando-o especialmente na manutenção de um ritmo elevado. Já há muito que não fazia saídas a pensar na média e desta vez apeteceu-me fazer um auto-desafio e animar o andamento.
Como a BMC nunca tinha estado no alto da Serra da Boneca, já tinha um destino. Faltava agora o percurso. Tendo em vista as aventuras que normalmente faço, o meu interesse é praticar a regularidade nas subidas e não propriamente o sofrimento momentâneo em 5Km para depois passar 15Km a descer sem fazer nada.
Com isto em mente desenhei um percurso circular de 70Km, saindo de Valongo ao encontro da longa subida até ao Ecocentro da Boneca, pelo lado de Capela. Descida rápida para a marginal, em Sebolido, regressando pelo interior, por Branzelo, Aguiar de Sousa e Recarei, até casa. Assim teria pelo menos 1 subida bastante longa e vários retalhos consideráveis de ascendente para me exercitar.
Tinha como limite as 3h00 de percurso e portanto, desde cedo, tentei estugar o passo. Sem pensar muito nisso, cheguei Sobreira sem tirar a telega e, em jeito de auto-desafio, estabeleci um novo objectivo para esta volta: Chegar ao final sempre em prato 50, facto inédito, já que sou habitualmente um spinner, sempre à procura da relação mais leve possível e portanto, algo dependente do prato 34.
Relativamente modesta à beira de outras andanças que já percorri, a altimetria não deixava de ser interessante para uma passeata de final de tarde, como confirmam os 1100m de acumulado registados no final.
Foi curioso fazer a gestão entre pulsação, cadência e "feeling" das pernas ao longo do percurso, e aos poucos ir ultrapassando algum receio que existia de não conseguir fazer esta ou aquela porção de subida. Apesar de alguma desconfiança inicial, lá consegui resistir à tentação e adaptei a pedalada na volta das 70RPM e tentei manter a pulsação abaixo dos 170bpm, o que para mim é desafiante, já que facilmente encosto nos 185bpm em meia dúzia de pedaladas mais descontroladas.
A parte em que senti uma quebra mais notória foi logo a seguir à descida da Boneca, porque perdi um pouco o "fio à meada" em termos da gestão que tinha feito nos 13 ou 14Km de subida anteriores. Mas pouco depois já estava de novo em velocidade de cruzeiro e a subida de Aguiar de Sousa, a que (infundadamente talvez) mais me preocupava, acabou por ser feita mais rapidamente do que nunca.
No final consegui completar o desafio proposto e fiz a totalidade do percurso em talega o que, confesso, não deixou de me admirar embora reconheça que as longas tiradas não são o melhor local para fazer experiências do género "deixa ver quantos quilómetros aguento em talega até estourar" e por isso nunca tinha surgido a curiosidade de experimentar tal configuração de andamentos nos últimos meses.
No final foram cumpridos 71Km, com 1100m de acumulado e feitos à média de 26Km/h.
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Saldo final dos últimos 4 dias: 3 saídas, 220Km e 4050m de acumulado positivo.
Chega agora um pequeno interregno marcado por um fim-de-semana longe dos crenques por terras do Gerês, para depois regressar às voltas a solo na primeira semana de Julho.
Até lá!