Ontem foi então o dia de mais uma epopeia ciclística. Epopeia leia-se para quem é novato nestas lides da estrada aberta, da liberdade e do devoranço de quilómetros em roda fina.
Esganado que andava dos longos meses de chuva, não perco agora uma oportunidade de recuperar o tempo perdido, planeando e executando longas tiradas em asfalto.
Mias uma vez o método de escolha foi bastante simples: Escolhe-se uma cidade alvo, seja lá por que critério seja, e depois é só encontrar o esparguete rodoviário que me leve até essa cidade e me traga de volta. Outros pontos de interesse ou nomes que me digam algo são bónus acrescidos.
Pois bem, desta feita a eleita foi.... Arouca! (Pois é, diz lá em cima na foto, suspense desnecessário.)
Para tirar a barriga de misérias por não ter visitado o sul do Douro no ano passado, este ano em 15 dias já é a segunda incursão no distrito de Aveiro.
Com a ajuda dos itinerários do nosso bosquímano de serviço, o Fogueteiro, lá consegui um troço de ligação entre castelo de Paiva e Arouca, a passar por Alvarenga (um bónus) onde já comi magníficas postas de bife de Arouca (!) em que dois pratos não serviriam para a envergadura do dito naco.
O resto juntei eu, com uma ida logo a começar bem na subida da serra da Boneca, passagem pelos arredores de Castelo de Paiva e, seguindo o rio Sardoura até o atravessar, já depois de Alvarenga, em direcção a Arouca. Depois de Arouca a subida à Abelheira, para depois seguir a estrada que me levaria a Canedo e depois a Lever, para atravessar a barragem de Crestuma. Última dificuldade do dia com a subida para Recarei através de Branzelo e Aguiar de Sousa, a subida do Salto.
A semana que passou foi muito mal dormida, com duas directas e outras tantas noitadas. Com tudo isso e ainda um trabalho agendado para sexta à noite, só bem depois da meia-noite consegui começar a preparar os equipamentos, incluindo a revisão do percurso no Gmaps e upload para o GPS.
Conclusão, às 4h10 é que me consegui deitar. Para levantar ás 6:50...
Mesmo assim não vacilei e às 7h30 estava a sair de casa.
Ritmo muito pausado, porque apesar do gráfico de altimetria não assustar (puro erro de avaliação), seria um novo recorde de quilometragem e portanto iria novamente andar em território desconhecido. Como tal, muita calma nas canetas a subir para Capela. Mesmo assim, sinto que a rotina da estrada já está a dar os seus frutos, e mesmo sem forçar, cheguei lá acima bem composto e em menos tempo do que em vezes anteriores.
Descida e rapidamente estava a atravessar a nova ponte de Entre-os-Rios, saudado na outra margem pelo anjo do memorial às vítimas da tragédia que ali se desenrolou em 2001.
Aqui o Edge entrou em parafuso. Apesar de reconhecer a rota, dava-me como estando a fazer um percurso paralelo a 300metros da rota.
Tive de improvisar a navegação, tendo para isso valido o estudo minimamente apurado que faço do percurso, decorando características chave.
Neste caso, sabia que tinha de dar uma volta grande até abordar Castelo de Paiva, pelo que resisti à placa que me levaria certamente para a nova variante. Não pude por isso deixar de me admirar com a volta enorme que era necessário fazer há uns anos para chegar até Castelo de Paiva, vindo de Entre-os-Rios.
Consegui também descortinar a ligação até à N225, por entre o maralhal de estradas duzentos e vinte e qualquer coisa que se cruzam ali.
Entretanto cancelei a rota no Edge e voltei a carrega-la. Resultou e estava novamente sincronizado.
Descida para atravessar o rio Sardoura com uma magnífica envolvente e travessia da ponte o que, já aprendi, significa... subida!
E de facto com pequenas oscilações e algum descanso, foi sempre a subir até Vila Viçosa e Vista Alegre. Pequeno descanso e nova subida, desta feita para Alvarenga.
A paisagem nesta primeira parte do percurso a sul do Douro é imponente e bastante bonita, embora de uma forma menos graciosa do que na margem norte, que descobri há um par de semanas.
É um terreno mais agreste e mais implacável, que nos seduz por um lado mas, ao mesmo tempo, nos avisa que não se deixará domar com facilidade.
A estrada apesar de estar um pouco maltratada, é perfeitamente ciclável. Não tem crateras de destaque, apenas aquele alcatrão mais rugoso e fendido. Até acho piada ao barulho "crocante" que faz quando rolamos em cima dele.
A descida de Alvarenga até ao local da foto, uma nova travessia do Sardoura é FE-NO-ME-NAL. Alcatrão de altíssima qualidade, curvas e contracurvas que em pelo menos dois pontos, são uma Stelvio em miniatura, já que conseguimos ver onde vamos passar a seguir, logo abaixo da berma.
Os últimos metros antes da ponte são um balde de água fria com cheiro a dor. Começamos a ver a subidorra que nos suga as forças durante 8 longos quilómetros, e que nos eleva do rio, a 180 metros de altitude, até aos 650 metros. E ainda vamos a meio da procissão!
Mas, antes do sofrimento, vem o alimento da alma. Como dizia o Fogueteiro, esta passagem é lindíssima e claro, acabei por aproveitar para me mentalizar para a subida com algumas fotos da envolvente e também da BMC. Dono babado...
A subida, esperava e portanto, como nunca se faz esperar uma senhora, não havia mais tempo para admirar a paisagem. É então uma subida lindíssima e faz-se (como tudo), tendo em conta uma boa gestão de esforço. Na verdade fiz grande parte em crenques, que é como acabo por me cansar menos e giro melhor a parte cardíaca. Isto curiosamente, já que sou um ciclista de rotação no resto do percurso. No entanto, é uma ascensão lenta, não sou nenhuma locomotiva!
A meio do percurso uma espectacular visão dos maciços envolventes. Não há cruzamentos, não há civilização, e há muito poucos carros. Para terem uma ideia, a estrada não cruza nada civilizado durante praticamente 18Km, salvo uma ou outra casa mais perdida. O piso é soberbo. Parece alcatrão colocado com todo o cuidado e que só se usa em dia de festa.
Adiante, que já se desce para Arouca! Descida com grandiosos convites ao BTT a ladea-la, especialmente um singletrack gigantesco que me ficou na retina.
Em arouca, cruzei o centro da cidade mas não apanhei a nova variante como sugeriu o Fogueteiro. Acabei por acompanhar a nacional até ao início da subida da Abelheira, sendo que como está em obras, nesta altura será de evitar, no entanto nada que faça muita mossa. Acaba por ir ter mesmo ao final da variante. 200m depois e começa a subida para a Abelheira.
Mais uma longa subida, bem longa que foi sendo vencida aos pouquinhos. Aqui já comecei a sentir o peso dos quilómetros nas pernas e levantei um pouco o pedal. Afinal de contas são, contas por alto, mais 10Km a subir, a juntar aos brindes que já tinha enfrentado nas horas anteriores.
Aqui acaba, em minha opinião, o interesse do percurso. Entrei naquelas zonas de povoações espalhadas ao acaso, que não são carne nem peixe. Não há interesse cénico, a estrada não é famosa e já começam a aparecer os fângios da estrada.
Parei algures em Louredo para abastecer de água, já que apesar do dia se desenrolar fresco e encoberto, tanta subida encarregou-se de me desidratar.
Alguma hesitação ali em Azevedo, porque o Edge estava em dia não. Ainda não descobri de quem é a culpa, mas desta feita o mapa estava com alguma lentidão a desenvolver-se no ecrã e à conta disso falhei a viragem em Gião. 30 metros depois lá me avisou que estava off course, e portanto dei logo com o erro. Voltei ao cruzamento e quando apontei a Gião ia ficando sem fôlego!
Que pista de aviação se desenhava à minha frente! Quilómetro e meio de uma recta perfeitinha, com socalcos e sempre a subir, ou grande parte dela. Embalei na descida, mas mesmo assim foi lutar até lá acima.
De Canedo até Lever mais um troço custoso de sobe e desce, sem grande interesse. Decididamente não gosto desta zona...
E estava eu na 108, prontinho a apanhar a pior zona da estrada, pelo menos entre o Porto e Entre-os-Rios: A subida de Broalhos até Branzelo.
Com a cabeça a ter de comandar a gestão e as forças lá venci mais este troço. Em Branzelo baixei o ritmo e apreciei bastante o descanso até à travessia do Rio. TRavessia igual a...? Exacto! Subida. Subida de Aguiar de Sousa a um ritmo surpreendentemente bom dado o acumulado que já pesava e bem nas pernas e o desgaste de mais de 140km no corpo.
Rolar tranquilo e sem nada de estranho até Recarei e aí deu-se o encontro. Vindo não sei bem de onde, o homem da marreta acertou-me em cheio. Comecei a sentir a pulsação a baixar e apesar de estar hidratado e alimentado, não quis arriscar forçar a barra. Afinal de contas estava já em território desconhecido, com mais de 6h40 de pedalada e o acumulado bem acima do anterior máximo.
Parei 3 minutos em frente à extinta Fétex para recuperar a concentração e fiz o derradeiro sacrifício: comi o óleo de fígado de bacalhau dos tempos modernos, um gel de limão.
As caretas que fiz com o gosto horripilante e desumano do gel surtiram efeito, já que ganhei forças para os últimos 15Km até casa.
Cheguei bem perto das 15h00, com pra exausto mas com mais um objectivo superado.
7 horas a pedalar, para fazer 169,3Km a uma média de 22,9Km. Uns estonteantes 2728m de acumulado, num percurso duro, muito duro, do qual me hei de lembrar durante uns tempos.
Gráficos bonitos, dados modernos e provas? Não há!
Adivinhem lá quem é que destruiu novamente o ficheiro com todos esses registos. Pois é! Coisa gabada, coisa estragada e pela segunda vez depois de jornadas importantes o Edge500 mandou-me à fava e não gravou o registo final.
Desta feita parei para respirar fundo e ter a certeza que estava a fazer o procedimento correcto. Fiz a paragem do cronómetro e de seguida o reset que guardaria os dados. Foi com tristeza que no momento seguinte fui ao histórico constatar que mesmo assim nada tinha ficado gravado. Valeu a falta de força na altura que evitou que um Edge500 cinzento ganhasse assas até se espatifar no chão uns metros à frente.
Amanha ligo para o service center da Garmin, mas sem grande esperança de haver já uma solução para este problema já que nos fóruns continuam os relatos de situações similares.
Para a semana é fim-de-semana de interfreguesias em BTT na Maia, pelo que as jornadas de estrada ficarão adiadas provavelmente até ao final de Junho, já que vou a Santiago de 4 a 10, em BTT.
Até lá irei magicar mais qualquer coisa em roda fina. Muito provavelmente irei por em acção o meu plano épico-turístico de ir de comboio pela linha do douro até à estação de Vesúvio, já no distrito da Guarda e voltar até Valongo de bicicleta, pela margem do Douro, pelas N222 e N108 em 190Km certamente avassaladores quer em exigência física quer em beleza natural.
A terminar uma palavra de apreço para os engenheiros têxteis suíços que desenvolveram os Assos Mille. Após 7 horas de contacto bem próximo entre o selim e a minha fisionomia, eu estaria pronto para mais 7 e mais 7 depois disso, ajudassem as pernas a manter-me em cima da bicicleta.
O conforto que estes calções oferecem está num outro nível. Bem melhor do que a análise no imediato (apesar dos primeiros quilómetros já serem reveladores), é comprovar que no final de uma volta exigente como esta estava sem nenhum dos sintomas desagradáveis que experienciei anteriormente, com calções relativamente bons de outras marcas.
Sem querer virar fanboy instantâneo, lamento apenas que não tivesse feito este investimento mais cedo, uma vez que foi seguramente o componente que instalei até hoje onde notei mais claramente e inequivocamente um benefício face ao preço pago. Portanto, nas tiradas mais longas de estrada, são eles os eleitos.
Dados finais (de cabeça, mas relativamente acertados)
Distância: 169,3Km
Média: 22,9Km/h
Acumulado: 2728
Tempo: Aprox. 7h
Paragens: 3 (foto, água e recuperação) em conjunto, não mais do que 20 minutos.
Consumo sólidos: 3 barrinhas, uma banana, dois cubos de marmelada e um (argh!) gel.
Consumo líquidos: 550ml + 550ml (Isotónico) + 1500ml (Água)