Uma montanha de Reis.
06 de Janeiro de 2018 // 152Km // 3190m AC+
Nota prévia: há cerca de um ano e meio que não escrevia uma crónica e, como seria de esperar, estou bastante enferrujado quer na escrita quer na fotografia. Assim sendo, não reparem nas arestas mais ásperas desta prosa. Hão de ficar mais macias com o tempo…
Dito isto, vamos para a montanha!
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E, assim do nada, estamos em 2018!
Não sou propriamente de fazer grandes resoluções em cada ano que começa. Acredito que qualquer dia é bom para fazer algo diferente e, portanto, a mudança de ano acaba por ser apenas uma convenção mundana que não interfere por aí além na minha gestão de aventuras.
Neste novo ano pretendia apenas dar continuidade ao espírito irreverente de fazer coisas diferentes e, assim sendo, nada como começar logo com o pedal direito!
Há praticamente um mês que não pegava na bicicleta. A última saída antes deste interregno tinha sido um gélido Porto > Bragança > Porto de quinhentos e poucos quilómetros, pedalados em menos de 48 horas. Como a chuva preencheu quase todos os restantes dias de Dezembro, a bicicleta ficou a aguardar um dia solarengo e mais convidativo para regressar à estrada. Quiseram os caprichos da meteorologia que essa oportunidade só chegasse no ano seguinte…
Tendo em conta a chuva e as temperaturas baixas dos dias anteriores, neste primeiro sábado de 2018 existia a previsão de queda de neve acima dos 1000m. Ou seja, um atractivo suplementar para me levar a pensar numa aventura mais montanhosa.
Com isso em mente, existiam logo várias possibilidades para explorar: Gerês, Lindoso, Freita, Montemuro e Alvão, só para citar alguns exemplos de altimetrias generosas e com potencial para a acumulação de neve. Ponderados os concorrentes, e como já há alguns meses que me andava a apetecer regressar ao “miolo” do Montemuro, acabou por ser essa a minha escolha para primeira volta do ano.
Ao contrário da pesquisa exaustiva que costumo fazer noutras demandas, desta vez desenhei o percurso praticamente de cabeça e sem grandes floreados: rabisco simples, o mais directo possível ao planalto da serra e com uns 150km de extensão. Passada a ideia para o mapa, acabei por não falhar os cálculos por muito!
Há já algum tempo que não me coíbo de usar o comboio para encurtar as minhas deslocações em contexto de aventura ciclística. Não necessariamente para poupar quilómetros mas, sobretudo, para prolongar os bons quilómetros. Ou seja, ao invés de desperdiçar tempo a pedalar em estradas desinteressantes e potencialmente perigosas, prefiro investir esses quilómetros a zonas bem mais interessantes. E nesta primeira passeata de 2018 era precisamente esse expediente que iria colocar em prática.
Sairia então de Caíde em direcção ao Marco de Canaveses e daí para o planalto do Montemuro, via Oliveira do Douro, com o regresso a ser feito pelas Portas de Montemuro e de novo por Marco de Canaveses e Caíde. Por norma não gosto de repetir blocos do percurso mas desta vez abdicaria desse preciosismo em favor de um troço maior na serra. A tal lógica primordial de privilegiar a qualidade sempre que possível...
Chegado estava o dia de me fazer à estrada. Saída relativamente madrugadora para meia dúzia de pedaladas até ao apeadeiro, bem a tempo de comprar bilhete antes da chegada do comboio.
A composição entrou na plataforma à hora certa: 07h17. Entro e acomodo-me na zona destinada ao transporte de bicicletas. A viagem é relativamente curta e dura cerca de quarenta minutos. E só aqui já ganho 1 hora e meia de passeio extra…
Se há algo que não gosto muito nas viagens de comboio no Inverno é a deficiente regulação da temperatura no interior da composição. Por norma a climatização está configurada para valores bem acima da temperatura de conforto (e não confundir “conforto” com “está mesmo quentinho aqui!”) o que leva a um incómodo choque térmico quando se enfrentam novamente os invernais 5ºC no exterior.
A estação de Caíde marca (para já...) o fim do ramal electrificado da linha do Douro. Daqui para a frente são as locomotivas a diesel que reinam. A estação em si é apenas mais um exemplo do mau casamento entre os edifícios típicos de estação portuguesa e a famosa amálgama de betão sensaborão dos anos 90. O resultado genérico e insípido dessa união nunca prende a minha atenção e, por isso, fiz-me à estrada sem perder muito tempo em contemplações arquitectónicas.
As primeiras pedaladas são dadas no meio do manto de nevoeiro que preenche o cenário. Manto que iria deixar para trás temporariamente, mal começo a subir até à N15. Para já vou desentorpecendo as pernas, à medida que o corpo vai percebendo que irá ter um dia ocupado.
E não demora muito até que contorno a rotunda de Casais Novos. Aqui, encontra-se o início da N211, a estrada entre Penafiel e Venda Nova (Baião) que, mais uma vez, iria percorrer na totalidade.
A descida até ao Tâmega é longa e gelada, mas pedala-se num ápice. De caminho liberto-me da bruma que entretanto se reinstalara e, em menos de nada, estou a atravessar o rio. O tecto de nevoeiro limita a vista mas dá uma boa fotografia. Aliás, os primeiros 50km seriam pautados por um constante encontro e desencontro com essa faixa de mistério em suspensão que pairava sobre os vales da região.
Tento manter o ritmo expedito na abordagem a Marco de Canaveses. A desordenada selva de betão local nunca me entusiasmou demasiado e portanto tomo-a apenas como um conhecido referencial no caminho.
Felizmente que o desinteresse destes quilómetros é largamente compensado pelos que se seguem. A estrada serpenteia pelos bonitos arredores da cidade, novamente envolvida por uma espessa camada de nevoeiro. E desta feita com um atractivo extra: o sol nascente já vencera os maciços montanhosos e, apesar de não o conseguir ver, noto que estará mais forte do que o desejável para esta viagem em busca de neve.
Os quilómetros passam e o Douro já está mesmo ali ao lado. Não passará muito tempo até a lindíssima panorâmica da albufeira de Pala se estender a meus pés.
Há uns anos costumava dizer que queria passar a minha reforma com o privilégio desta vista sobre a albufeira do Carrapatelo. Hoje em dia, não estou assim tão certo...
A zona é agora lugar de corrupio, fruto do turismo canalizado e pendurado no Douro. Prova disso são os barcos ancorados em Porto Antigo, o hotel que destoa na encosta e as embarcações que ritmicamente navegam rio acima e abaixo.
Atravesso o rio e recebo logo as boas-vindas do Montemuro, com a primeira amostra de subida e uma mirada a um profundo vale secundário. A brincar, a brincar... a intimidação é real! Ali ao lado o Douro serpenteante desaparece no horizonte, engolido pelas garras das faldas do Montemuro, Meadas, Aboboreira e Marão.
Mais à frente numa pequena cafetaria em Oliveira do Douro espera-me a primeira paragem do dia, para reforçar o pequeno almoço. Daqui para a frente iria entrar definitivamente na montanha e no isolamento que lhe é característico. Portanto, fiz por aproveitar as últimas comodidades da urbanidadade.
Aconchegado o estômago, arranco para a verdadeira subida. Até ao planalto do Montemuro iria utilizar uma vertente que já conhecia, ainda que de forma intermitente: Um primeiro bloco que já tinha feito a subir, um miolo completamente desconhecido e depois um troço final que já tinha feito a descer. Assim, sabia que esta não era uma vertente particularmente exigente, aparte de alguns pequenos troços em que a inclinação é um pouco mais... divertida!
E não deixa de ser curioso como mudei a minha atitude perante as subidas, em pouco mais de duas décadas de pedaladas. Inicialmente abominava-as e maldizia entredentes sempre que o guia apontava mais uma encosta das serras de Valongo como o caminho a seguir. Hoje, depois de acumuladas dezenas de milhares de metros em subidas por essas estradas e serras fora, é aí que me sinto como um peixe na água. Tanto assim é que, hoje em dia, são as subidas verdadeiramente longas que me entusiasmam de verdade. Escusado será dizer que, com os seus 16km de extensão, esta escalada ao Montemuro se encaixa bastante bem nesse perfil!
Por esta altura tenho também a certeza que a esperada neve não iria estar presente lá no alto da montanha. O sol quente já se impunha num céu imaculadamente limpo, obrigando até a alguns reajustes no guarda-roupa mais invernal que tinha preparado. Contudo, nunca se dá uma viagem ao Montemuro como perdida! Não há neve mas há sempre algo novo para descobrir. Há já alguns anos que não pedalava no miolo da serra e, só por isso, a expectativa para esta incursão estava em alta.
Aponto à subida. Para começar, a reprise até São Cipriano. A estrada é recente e a subida mostra-se acessível e bastante constante. Por aqui a encosta está profundamente alterada pelo trabalho do homem e o minifúndio espalha-se montanha acima, desdobrando-se num pouco de tudo: terreno de pastorícia, vinha, milheiral e horticultura. O Montemuro verdadeiramente indomado só começará para lá do meio da subida...
Confesso que nesta primeira fase nem prestei muita atenção ao que me rodeava. Pedalava em piloto automático, absorto nos meus pensamentos. Isto porque, apesar da sua variedade, este bloco não é particularmente memorável. Sem surpresa portanto, foi já com quase dez quilómetros pedalados que compus as primeiras fotografias...
Atravesso um último conjunto de casas e... agora sim! Estou em plena serra! A partir daqui entraria na zona mais despovoada do percurso e durante mais de uma dezena de quilómetros toda a presença humana parece desaparecer, excepção feita a um vigilante pastor que iria encontrar mais acima na serra.
Este miolo desconhecido trouxe também consigo as partes mais rebeldes da subida. A “comissão de boas vindas” fez os valores de inclinação disparar logo para os dois dígitos, numa espécie de declaração de intenções. Sabia que não me esperava coisa boa daí para a frente...
Porém o caminho só tem um sentido e ainda faltava muito para o ponto alto do dia. Não tenho grande opção senão continuar a lutar contra duas forças poderosas: a gravidade e a ferrugem. Estou claramente em desvantagem, e o terreno conquista-se a custo. Mas, com a ajuda das paragens para fotografar, consigo gerir as pedaladas para levar de vencida esta parte mais complicada.
Entro assim no último terço do percurso, o tal que já tinha feito no sentido contrário. A estrada pouco mudou. Talvez os remendos sejam recentes, mas o piso degradado é seguramente o mesmo que pisei há alguns anos atrás. Se a descer incomoda um pouco, a subir não me faz muita diferença. Até prefiro assim por causa das fotografias. Afinal de contas, nunca se diz que não a uma boa textura!
A paisagem que a vista alcança é cada vez mais incrível e a estrada é tão fantástica a subir como a descer! Num último esforço, finalmente reencontro o planalto do Montemuro. Escusado dizer que as vistas aqui são largas, abarcando dezenas de quilómetros até ao horizonte, em todas as direcções.
Mas no primeiro olhar é impossível escapar ao impacto visual do parque eólico de Montemuro. Com mais de meia centena aerogeradores é um dos maiores do país e mudou significativamente a paisagem da serra desde o início do século XXI, quando foi iniciada a sua instalação.
É igualmente inevitável que os olhos se cruzem com as inúmeras manchas negras de terreno queimado, cicatrizes dos devastadores fogos do ano passado. Felizmente este coberto vegetal à base de mato rasteiro recupera rapidamente e acredito que nos próximos anos a serra atinja novamente a plenitude da sua beleza.
Porém, o olhar acaba por focar-se sobretudo na vastidão aparentemente inerte do planalto, nas longas rectas ondulantes, na paleta tímida de Inverno e na forma sobranceira como a montanha se impõe às suas congéneres dos arredores. É notável como esta serra tem tanto de acolhedor como de intimidante!
Se existisse tal coisa como um concurso para escolher o meu cruzamento preferido, o cruzamento que fica acima da Capela de São Cristóvão estaria em grande vantagem para a vitória final. Foi aqui que desemboquei numa das minhas primeiras grandes voltas a solo por estradas desertas e fascinantes e logo aí fiquei refém do seu magnetismo. Desde então já o reencontrei algumas vezes vindo das mais variadas direcções e recordo-o sempre como protagonista de boas memórias.
Também por esta altura, como seria de esperar, o cansaço fez-se notar. Afinal de contas tinha acabado de coleccionar 1000m de acumulado de subida em apenas 16km! Entre o sorriso de felicidade por me sentir “em casa” e a ocasional fotografia fiz por me alimentar e aproveitar o planalto para recuperar energias. Sabia que até às Portas de Montemuro ainda encontraria uns pequenos topos serranos e, claro, teria também de domar os quase 6km da subida pela N321.
Sabendo de antemão da escassez de lugares para abastecer, tomei as devidas precauções em termos de alimentação para esta jornada. Ainda assim, com a aproximação da hora de almoço, o pensamento resvala invariavelmente para uma bela e retemperadora sopa, prato que há uns anos garantidamente não associaria a uma jornada de bicicleta. Entretanto, aprendi não só a aprecia-la como a considero fundamental em qualquer aventura a pedalar para longe!
Por alguma razão misteriosa, tinha a forte convicção que existia em Feirão um café/restaurante capaz de providenciar tal iguaria. Mas, e como pude confirmar pela ausência do dito estabelecimento, nem sempre podemos confiar em memórias com 5 ou 6 anos. Resignado, segui caminho. Mais não fosse teria o café da bomba de gasolina nas Portas de Montemuro, daí a uma vintena de quilómetros. Felizmente, acabei por não ter de pedalar tanto...
Como compensação imediata, a alma alimenta-se sofregamente da vista sobre o vale do rio Balsemão. Uma espécie de representação liluputiana da realidade em que todo o cenário parece uma miniatura, especialmente as montanhas com mais de mil metros que o ladeiam. Que pedaço de paraíso!
Em Campo Benfeito arrisco um pequeno desvio para o interior da aldeia, na esperança de encontrar algum sítio onde abastecer. Apesar de não ter sido bem sucedido nessa demanda, acabei por esbarrar com uma boa oportunidade fotográfica...
Retomo a rota traçada. Ali mesmo ao lado, na aldeia vizinha de Rossão, encontro finalmente um café! Ao entrar, além dos olhares de estranheza a que já estou habituado, notei também que o “almoço” seria pouco convencional, tendo em conta a escassez de opções em vista. Mas como na estrada nunca se enjeita uma oportunidade de abastecer, improvisei: uns snacks e uma coca-cola asseguraram calorias suficientes para pedalar mais um punhado de quilómetros.
Arranco, continuando a pedalar para sul. À saída da aldeia, uma mini floresta de líquenes ramificados preenche o vazio deixado pela folhagem das árvores, testemunhando de forma inequívoca a pureza dos ares que se respiram por estas bandas.
Ao fundo da estrada, o céu passa a dominar o campo de visão. Um último topo e a paisagem abre-se novamente, revelando a ilustre vizinhança montanhosa a Sul da Serra de Montemuro: a Serra da Freita e a Serra de São Macário são as silhuetas dominantes, espreitando por entre o nevoeiro que entretanto recomeça a instalar-se no vale abaixo.
Uma pequena mas íngreme descida separava-me agora da N321. Não pude deixar de parar a meio para uma fotografia da povoação de Carvalhosa, estoicamente encravada no talude da serra. Ali ao lado, o serpentear da estrada antecipava o que me reservava o próximo punhado de quilómetros até atingir a cumeada da serra.
A subida pela estrada nacional, seja qual a vertente, é indiscutivelmente a forma mais fácil de alcançar o topo da serra. Não admira portanto que pedale ligeiro pela encosta acima, bem menos esforçado do que na ascensão matinal.
Na berma da estrada, alguns blocos rochosos ainda guardavam pingentes do gelo que sobreviveu até meio da tarde. Foi, aliás, o mais próximo de neve que tinha visto até então. Mal eu sabia que isso estava prestes a mudar...
Não é segredo que a Serra de Montemuro é uma das mais altas elevações da região. A passagem rodoviária no alto cruza a serra acima dos 1200m de altitude e isso diz muito sobre a variabilidade de condições que poderemos aí esperar num dia de Inverno. Se até então eu pedalara protegido pela encosta da serra, mal a estrada aponta a norte, consegui perceber que havia algo diferente no ar... O céu azul sob o qual pedalara desde manhã foi substituído por um denso manto cinzento que se enegrecia a olhos vistos, puxado pelo vento forte que entretanto se levantou.
Ainda que apreensivo com a mudança na meteorologia, continuava a divagar mentalmente noutras aventuras vividas por estas bandas. E tendo em conta o rol que consegui desfiar em poucos minutos, não admira mesmo que o Montemuro seja a minha montanha de eleição.
E por falar em memórias, eis a solitária paragem de autocarro no cruzamento da estrada da Faifa. Há uns anos foi nela que me apoiei, completamente exausto, depois de ter descoberto o sadismo da subida ao Montemuro por Sobradinho. Numa dimensão oposta, a última vez que por cá tinha passado foi há pouco mais de meio ano, numa visita a meio da noite durante o devaneio que foi pedalar 620km seguidos com 13.500m de acumulado positivo em apenas 60 horas! Como disse, memórias da estrada não faltam...
Entre divagações e miradas à paisagem, alcanço o topo da serra. Tinha ideia de fazer uma paragem na bomba de gasolina para reforçar o parco almoço mas o estado do tempo agravava-se rapidamente. A paragem traria consigo uma incógnita que preferi evitar e por isso fiquei-me por um par de registos no panorâmico varandim. Estes seriam os últimos olhares sobre a encosta voltada a sul...
Ainda insisti e, durante centena de metros que separam a bomba de gasolina da capela, ponderei numa paragem mais documental. Contudo, as condições estavam efectivamente muito adversas e definitivamente abandonei a ideia. Sou responsável o suficiente para perceber que oportunidades não faltarão para visitar o Montemuro. Por isso, contemplar a vista e fotografar passaram a ser as minhas últimas preocupações naquele momento.
O vento soprava furiosamente, decorando a vegetação com uma camada de gelo de invulgar e belo efeito, o sincelo. Encostei-me ao muro exterior da capela para me proteger e para ajustar o guarda-roupa. Ia perfeitamente prevenido com agasalhos extra, mas naquelas condições não se trata apenas de estar confortável mas, também, de estar em segurança.
Com rajadas galopantes a atingir em cheio a encosta onde a estrada serpenteava, sabia que mal deixasse o meu abrigo granítico de ocasião teria de lidar em primeira mão com o sopro da montanha.
A minha preocupação prendia-se sobretudo com o comportamento dinâmico da bicicleta durante a primeira parte da descida: Primeiro, não sou propriamente um tipo pequeno e, depois, os meus sacos aumentam e muito a superfície lateral da bicicleta, criando um certo efeito de “vela”. Não admira portanto que os primeiros 3 ou 4 quilómetros tivessem sido ultrapassados com alguma tensão e um ou dois sustos...
Felizmente o resto da descida foi muito mais pacífico e à medida que me encaixava mais no vale a temperatura voltou a subir consideravelmente, tendo o vento parado por completo. Dou comigo a pensar que, por muito desagradável que possa ter sido a experiência no alto, esta inconstância e imprevisibilidade são grande parte do magnetismo e beleza da montanha...
E porque assim é, convém ter sempre um plano B para estas situações: no meu caso seria descer a montanha pela vertente Sul, mais abrigada dos ventos, e depois fazer o regresso por Castelo de Paiva. Felizmente não foi necessário e tudo acabou por se resolver segundo o rabisco original.
Sem grande esforço chego então ao centro de Cinfães, lugar embrulhado num inebriante caos televisivo, com a Feira de Reis a servir de mote para a presença de um daqueles famigerados programas de venda de chamadas telefónicas e que difundem a música dita… popular. Contorno o aparato, descortinando uma pequena pastelaria para repor energias.
Aconchegado o estômago, lancei-me estrada abaixo para finalizar o que havia começado uns trinta quilómetros antes: completar a longa descida desde a cumeada até ao sopé da Serra de Montemuro.
De caminho, uma mirada à elegante ponte de Porto Antigo, obra do Engenheiro Edgar Cardoso e que tem a particularidade de estar parcialmente assente nos pilares da antiga ponte de Mosteirô, entretanto substituída no seguimento da construção da barragem de Carrapatelo. Aliás, nesta pequena área concentram-se ainda mais dois imponentes exemplares arquitectónicos de época: os viadutos ferroviários de Pala e do Ovil, que servem a linha do Douro desde 1879!
Contorno a albufeira até Pala. Um final de tarde nas margens do rio mais bonito do mundo e com vistas viradas a poente é um chamamento ao qual não se deve resistir. Aproveitei o recanto da Capela de Ribadouro e fiquei ali largos minutos absorto, assistindo à rápida descida do sol para detrás das colinas.
Como sempre, não foi fácil arrancar-me à contemplação. Mas ainda havia mais estrada para palmilhar até ao destino final e, resignado, tive de colocar novamente os pedais em movimento.
Subindo de Pala para o Marco de Canaveses, a viagem pela N108 proporciona pelo menos dois momentos visuais inolvidáveis: uma panorâmica virada a Oeste sobre o rio que se esconde por entre e as serras e, um pouco mais acima, a incrível vista sobre a bacia de Porto Antigo. Em ambas as ocasiões não hesito em me entregar à contemplação. Afinal de contas é desta matéria que as memórias são feitas, já que números e gráficos não se penduram na parede...
Seis quilómetros depois de largar a margem do Douro, chego ao cruzamento da Venda Nova. A partir daqui o perfil da estrada suaviza consideravelmente, o que faz com que o restante troço até Marco de Canaveses se faça de forma despachada. A efémera luz solar dos dias de Inverno esgota-se finalmente e o crepúsculo instala-se. Daqui para a frente os registos fotográficos cessam e concentro-me apenas em devorar os quilómetros finais até Caíde.
Novamente em Marco de Canaveses e, tal como de manhã, liberto-me rapidamente da cidade. Desço até ao Tâmega para a segunda travessia do dia, passagem que marca o início da última dificuldade desta jornada: a subida de Sobretâmega. Uma subida aparentemente banal mas que me agrada bastante, mais não seja por ser uma daquelas longas.
Enquanto palmilhava os 10km da subida, ia fazendo contas de cabeça e chego à conclusão que estava adiantado em relação ao horário do comboio que escolhi para regressar à base. Portanto, terminada a subida, decidi parar na melhor bomba de gasolina da região para beber qualquer coisa fresca.
Apaziguada a sede, no regresso à estrada para os quilómetros finais proporcionou-se explorar um novo acesso à estação de Caíde, algo que andava a adiar há longos meses. Abordo a opção com curiosidade mas o devaneio revelou-se de pouco interesse: a estrada é bastante íngreme e está forrada a paralelo deveras irregular. Não é, por isso, grande alternativa ao percurso normal, ainda que esse seja um par de quilómetros mais longo.
Terminada a áspera descida, entro na estação pouco depois das 19h00. Quando olhei para o painel das partidas demorei um momento a processar porque é que o “meu” comboio não surgia na lista. Peguei no telefone para confirmar o horário e ainda tive de olhar duas vezes para perceber que tinha trocado a hora de saída do comboio de Caíde com a hora de chegada ao meu destino...
Durante largos quilómetros andei a fazer mal as contas! Nunca teria parado na bomba de gasolina nem feito o desvio final se percebesse que, ao invés de estar fazer horas para o um comboio que não existia, estava a atrasar-me ao ponto de falhar o que me interessava! Assim, por meia dúzia de minutos tive direito a quase uma hora de seca... Fantástico!
Maldizendo a falta de atenção, lá me instalei numa mesa da cafetaria da estação. Felizmente, entre um café, uns telefonemas e alguma leitura digital, os minutos acabaram por passar relativamente depressa.
Mas o dia não terminaria sem mais alguma emoção: Já estava com um pé dentro do comboio quando tive um baque. Tinha deixado o capacete e o colete reflector pousados no chão da cafetaria! Lancei um sprint meio ilegal pelas rampas e pelo túnel da estação, conseguindo resgatar os pertences. Voltei à composição mesmo a tempo de não ficar novamente apeado. É que ainda não tinha acomodado bem a bicicleta e já o comboio arrancava, à tabela…
Tendo em conta o bréu no exterior e a falta de painel electrónico funcional no interior da composição, é o relógio que me dá uma noção aproximada de onde estou. Algum tempo depois, a visão de uma plataforma familiar assinala a contagem decrescente para o meu destino.
Exactamente dois minutos depois, chega a minha vez de sair. Estou agora no centro da cidade, quando ainda há pouco estava lá no alto de uma das montanhas mais mágicas do nosso país...
De regresso a casa não pude deixar de devorar a obrigatória fatia de Bolo Rei, em jeito de comemoração do dia que lhe empresta o nome.
A primeira de 2018 já está. Certamente que outros devaneios se seguirão, ao sabor da curiosidade e da oportunidade.
Até lá, boas aventuras!