Provavelmente umas das voltas mais duras e recompensadoras que cumpri até hoje. Subi 3 das principais elevações da região numa volta a todos os níveis memorável.
Marão + Alvão + Viso · O êxtase da subida // 15 Jan 2011
Porquê o Alvão?
Porque quando olho para um ponto chave no mapa, tenho de passar por lá, dê as voltas que der. E desta feita, foi a aldeia de Lamas de Olo que me chamou a atenção. Daí até pensar numa forma para ir até lá e voltar, foi um piscar de olhos. Tudo bem misturado - e com um bónus chamado Viso que aparece à última hora - temos o irresistível cocktail de quilómetros para mais um passeio memorável.
Mais uma vez utilizei o comboio como rampa de lançamento, evitando assim fazer preciosos quilómetros por zonas que já conhecia. Desta feita ao invés de levar o carro com a bicicleta para Ermesinde e apanhar aí o comboio directo para a Régua - o que implica regressar a Ermesinde e empacotar tudo de novo para voltar a casa - optei por sair directo do apeadeiro do Suzão, mesmo que para isso tivesse de realizar um transbordo em Penafiel.
Ainda não conhecia este sistema e isso notou-se. Em Penafiel andei à procura de uma bilheteira que não existe - os bilhetes são comprados no bar da estação! - e depois estive 10 minutos ao frio à espera do comboio que me levaria até à Régua, quando poderia ter estado, como toda a gente, dentro do urbano que me levou até Penafiel, uma vez que esse só regressa para o Porto 15 minutos depois de partir o comboio para a Régua. Numa próxima já sei: o bilhete para a segunda parte da jornada compra-se no comboio e portanto só saio do confortável urbano quando entrar na plataforma o interregional!
A viagem para a Régua é sempre um atractivo por si só. A partir de Pala o comboio agarra-se ao rio para não mais o largar. É sempre com alguma nostalgia que revejo Porto Antigo, os magníficos pomares da aldeia de Barco e o imponente maciço da Serra das Meadas que, do alto dos seus 1100m, nunca deixa de me amedrontar tal a forma abrupta com que se lança sobre aqueles que a contemplam. Na estação de Rede, onde há sempre uma paragem mais longa, os simpáticos revisores e o maquinista não se contiveram e ainda me chamaram, tal era a curiosidade sobre a "estranha arquitectura" da BMC. Assim entre duas de conversa e uma espreitadela à cabina do comboio, rapidamente estava a chegar ao destino.
O plano original era então seguir a N2 entre a Régua e Vila Real para cruzar depois o Alvão de Sul para Norte. Há alguns dias tinha lido a notícia de que a N2 estava interdita ao trânsito por causa de uma derrocada que bloqueara uma das faixas de rodagem. No entanto e apesar da notícia referir que era feito um desvio, nunca imaginei que fosse um senhor desvio como aquele que percorri!
Os primeiros dois quilómetros à saída da Régua apresentam uma estrada aborrecida, com perfil de variante urbana, que estava desejoso por abandonar. A verdadeira N2 só se revela quando, timidamente, somos encaminhados para uma saída daquilo que agora é, primordialmente, o acesso à A24.
Aqui começa então a N2 tal como já a conhecia do troço entre a Régua e Castro Daire: uma estrada encorpada, de boa qualidade sem trânsito e com uma interessante envolvente. A subida é constante, à volta dos 5%, e depois de se marcar um ritmo, sobe-se quase sem dar por ela. Curiosamente, e ao contrário do que estava à espera, a estrada não sobe sempre. Depois de passar Lobrigos e até Santa Marta de Penaguião é praticamente sempre a descer. E continuaria a descer por mais dois ou três quilómetros não fosse o facto de surgir, logo à saída da vila, o tal desvio.
E que desvio meus amigos... Na altura em que a tendência era descer, de imediato começa a escalada a toda a velocidade pela encosta do Marão acima. Isto por que a alternativa era a N304 em direcção a Mafomedes que rapidamente me puxava para bem longe da N2 e, sempre, encosta acima. O piso continuava excelente, excepção feita a um pequeno troço dentro da aldeia de Fornelos em que andei por empedrado (não confundir com Pavé que será alcatifa ao pé disto!).
A subida era de facto uma constante. Apesar de haver bastantes pontos de recuperação, com pequenas descidas ou planos, a tendência era maioritariamente a de subir. E, ironia das ironias, esta foi a alternativa que tinha considerado em primeiro lugar para fazer o percurso até Vila Real, mas acabei por não concretizar devido aos 6 quilómetros extra que implicava, numa zona bastante acidentada. Mas acabou por ser um feliz acaso porque a envolvente é magnífica. A dada altura já nem olhava para a estrada onde circulava mas sim para o fantástico espectáculo que me rodeava e, sobretudo, para o rail reluzente lá ao fundo, que me fazia adivinhar, pela sua inclinação e altitude, que mais uma subida me aguardava.
Podem ver uma panorâmica de um dos pontos interessantes da subida:
AQUI
E mesmo quando pareceu surgir uma trégua, logo à saída de Fornelos, numa inclinada descida para o "tanque fluvial" lá do sítio - muito aprazível por sinal e que me teria valido um banho se no pico do Verão estivéssemos - logo de seguida a subida era descomunal, com rampas de 10 e 12%, aliás bastante comuns ao longo dos 16Km do desvio. E as rampas endureceram nesta segunda parte já que era preciso transpor mais uma elevação de respeito até Pomarelhos (acima dos 600m) antes de regressar à N2, já muito perto de Vila Real.
Foi, por isso, um desvio que recomendo vivamente! Tanto pela dificuldade que representa mas, sobretudo, pela tranquilidade e envolvência. Não admira que os locais prefiram dar a volta pelo IP4+A24 para ligar a Régua a Vila Real. O percurso pela nacional será apelativo apenas a quem viaja em passeio, uma vez que o constante zigzaguear pela serra não é nada prático para quem esteja com pressa...
Chegado a Vila Real estava na altura de atacar a subida do Alvão. Modéstia aparte, com o acumulado que já trazia e dadas as rampas que já tinha enfrentado olhei para o Alvão com menos preocupação do que aquela que me assaltou quando desenhei o percurso em casa. O aquecimento tinha sido bom e sentia-me com confiança para a subida.
No meu percurso, o acesso à única estrada que atravessa o Alvão vinda de Vila Real, foi feito via Escola Superior de Enfermagem. Isto implicou começar logo com rampas de 12 e 14% por entre as casas que povoavam o sopé do Alvão, em ruas de paralelo mal calcetado. Só quando apanhei a estrada "principal" é que percebi o porquê do Zé ter dito que a subida era relativamente acessível! De facto, passei a ter inclinações muito mais modestas de 6 a 8%, que fizeram com que o resto da subida fosse muito mais descontraída e suportável, além do piso ser muito melhor.
Assim, lá fui eu encosta acima com a visibilidade a reduzir-se a cada quilómetro. Um denso manto de nevoeiro cobria as últimas centenas de metros da serra e, por isso, não foi muita a paisagem que consegui ver. Mesmo assim confesso que gostei bastante, já que adoro a atmosfera etérea que estes mantos densos criam. A visibilidade no topo não seria superior a 50m, conseguido-se ver pouco mais do que as a primeira linha de mesas de piquenique na beira de estrada, junto à barragem cujo espelho de água jamais consegui ver.
Ainda a festa estava a começar e já o acumulado metia respeito...
O roteiro incluía, claro, o pequeno desvio para atravessar a aldeia de Lamas de Olo. Aqui tive a grata recompensa de a aldeia estar numa concha geológica que aqueceu mais rapidamente que o resto do topo da serra, criando uma nesga de céu limpo e visibilidade elevada em comparação com a restante subida.
E que dia bonito estava lá no alto! É uma daquelas aldeias em que o tempo parece passar mesmo muito devagar ao som do ribeiro cristalino e dos badalos do gado. E aqui não podia falhar a foto com a placa de madeira que assinala os limites da aldeia!
A estrada que percorre o planalto do Alvão é lindíssima e, de ambos os lados, a paisagem autóctone faz as minhas delícias, já que tenho um enorme ódio de estimação pelo eucalipto, esse eco-parasita. E toda a serra, rica em granito, é um depósito natural de água. Por todo o lado pequenos fios de vida escorriam das bermas e por entre os penedos.
Mas o melhor ainda estava para vir. Faço um par de quilómetros a rir-me sobre o facto do Zé ter falado em orientar-me lá em cima como os pombos, tendo como referência o Monte Farinha. Mas se eu não conseguia ver o monte... estava condenado a "voar" em círculos!
Claro que não seria um problema dar com o caminho certo nesta ocasião, porque a estrada principal é que mandava e essa era sempre em frente!
Mais eis que surge, plantado na berma, um penedo mais colorido que os outros, pintado de branco e com uma garrafal inscrição: "Mondim de Basto". E não é que do lado direito do penedo, o céu estava perfeitamente limpo? Lá ao fundo, o recorte da inconfundível silhueta do Monte Farinha. Uma trégua que permitiu também comprovar a privilegiada vista que o Alvão nos oferece e o paraíso geológico que o rodeia.
Começam aqui os 1000 ou 1500m que me fizeram abrir a boca de espanto. É um troço deslumbrante, em que o alcatrão é quase branco e nas bermas se alinham os pinheiros, qual paisagem alpina. Indescritível!
Segue-se a igualmente bela descida para Mondim de Basto, feita ao longo do sopé da crista que culmina com a Senhora da Graça. O convite que o Monte Farinha nos lança, sempre que perto dele passamos, é muito forte, mas desta vez teria de esperar, até porque tinha um encontro marcado com o Diabo, uns quilómetros à frente...
Começa aqui um dos troços menos interessantes do passeio. A ligação do Monte Farinha até Mondim não tem nenhum ponto de interesse em especial e o percurso até Celorico é de má memória para mim. Por isso, foi altura de começar a organizar as ideias e pensar como iria ser feito o ataque ao Viso.
Apesar do espicaçar feito pelo Zé na sexta, já andava a estudar o Viso, no papel, há algum tempo, mas sem nunca dar a pedalada decisiva e de o enfrentar. No seu blog, o Luís Manuel tem um "one shot" em que percorre Lameiras, Senhora da Graça e o Viso na mesma volta e, em sintonia com o ele escreve, por todo o lado lia que o Viso era de facto mais complicado que o seu vizinho de Mondim. Assim, quis saber de que fibra sou feito e, por isso, decido atacar o Viso sem paragens. Sentia-me com força para isso e, a partir do alto, o percurso ia acalmar um pouco em termos de dureza o que permitiria gerir as energias que sobrassem até casa.
A subida do Viso, desde Mondim, está dividida em duas partes. A primeira é uma fotocópia do que se poderia encontrar nas zonas mais complicadas dos primeiros 60% da Senhora da Graça, sem cotovelos mas com iguais inclinações sempre entre os 8 e os 12%. Só que depois, enganados por uma curta descida, entramos no verdadeiro inferno.
A ascenção foi feita desde logo a um ritmo muito muito baixo. Curiosamente para esta volta levei no ipod o concerto Big 4 na Bulgária (Anthrax, Megadeth, Slayer e Metallica) o que implicava ouvir trash metal furioso ao longo de toda a subida, numa altura em que o que precisava era do embalo gentil da Suzanne Vega ou da Corinne Bailey Rae... Mas, partir a batida da música e ritmar a reduzidíssima cadência de pedalada com o elevado ritmo sonoro ajudou a ocupar a cabeça e a ultrapassar esta primeira parte. It's all a mind game...
Mas, depois da descida, chegamos a outro patamar...
Na volta de Cabeceiras de Basto, lembro-me de ter passado aqui no cruzamento que vai para o grand finale do Viso, mas nessa altura consegui fugir. Desta vez, estava destinado a enfrentar o sadismo de quem desenhou aquele troço de estrada.
Só a visão inicial é assustadora. Do nada surge uma parede que, sem respeito pelo pobre coitado que já tinha 85km e 2500m de acumulado nas pernas, se apresenta com uns simpáticos 14% mostrando qual vai ser a toada até ao final. E depois só piora. Rapidamente, estamos nos 17% e... bem depois é o cotovelo que acredito que seja a estocada final para muita gente que tem o atrevimento de desafiar o Viso, já que aí foi preciso morder os dentes e literalmente proibir-me de pôr o pé no chão, tão perto que estava do final. São largas centenas de metros sempre acima dos 14% com o pico nos 19%. O ritmo é penosamente lento atingindo um mínimo histórico: 28 rotações por minuto e uns estonteantes 4.5Km/h!
Apesar de estar um dia fresco, eu suava em bica enquanto, a cada pedalada, tentava vencer mais um metro daquele terrível alcatrão. E aqui entra em campo a preparação psicológica que ao longo do tempo se vai apurando e que é especialmente importante nestas tiradas longas. Manter a cabeça ocupada em não pensar na subida e treinar o "já só falta" em oposição ao "ainda falta tanto". Isto traduziu-se numa maior tranquilidade perante o obstáculo, o que levou ao abaixamento considerável da frequência cardíaca, mesmo numa situação de carga extrema como era esta. Normalmente, não seria preciso uma subida tão complicada para fazer disparar os batimentos cardíacos acima dos 185bpm, o que faz logo soar o alarme do Garmin. Desta feita, consegui manter-me abaixo dos 172bpm durante o percurso todo. Naturalmente que a (muito) baixa cadência de pedalada também ajudou, mas é este tipo de gestão que me interessa aprofundar e melhorar, uma vez que o meu objectivo é a regularidade e não a rapidez. Ainda tenho muitas arestas para limar, mas aos poucos vou aprendendo a ler o corpo melhor e a tirar partido disso ao longo dos quilómetros.
Com o horizonte cada vez mais dominado pelo azul do céu, sinto que o final da subida está próximo. Como não conhecia, ainda hesitei depois de atingir o penedo que efectivamente marca o final do prémio de montanha. Por isso segui as indicações em direcção à capela. Mas a ligeira descida, uns metros à frente, logo confirmou que o Viso estava de facto conquistado.
Ainda assim optei por fazer o resto do desvio e fui até à capela para ter uma visão ampla da envolvente, cumprindo o troço completo até à cota mais alta. E não são muitas as vezes que temos oportunidade de estar a um nível mais alto do que um gerador eólico, mas ali é precisamente isso que acontece.
No total, desde a viragem em Celorico até ao penedo no topo do Viso, passaram os 63 minutos mais duros que já enfrentei nestas lides do ciclismo de estrada.
Porque o Viso é de facto como o pintam. Achei-o mais complicado que a Senhora da Graça, não só porque a dificuldade é crescente e o final muito mais demolidor, mas especialmente porque assim de repente não se dá 5 tostões por ele. É um monte "normal" sem aquela geologia assustadora do Monte Farinha e não é muito famoso. Mas esconde uma dureza acima da média e por isso deve constar na lista de desafios a conquistar por todos os que gostam destas maluquices. Com ou sem paragens pelo caminho, chegar lá acima, é extremamente recompensador.
O Viso estava então ultrapassado, mas o dia ainda não estava ganho. Faltavam mais de 70km para chegar a casa os minutos avançavam rapidamente. A descida é feita a um ritmo alto e o troço no sopé é muito agradável, com pequenas aldeias agrícolas aqui e ali num suave sobe e desce. Em Silvares regresso definitivamente à civilização ao apanhar a N207 em direcção a Felgueiras. A Santa Quitéria não incomodou muito já que a estrada onde eu seguia, contornava o sopé da serra pelo lado Sul.
Depois de atravessar Felgueiras estava na hora de testar o troço sugerido pelo Indy. Assim tomei a direcção de Lagares e deixei-me levar pelo GPS. Quando, num corte para o interior comecei por apanhar logo duas rampas complicadas, estive tentado a duvidar da eficácia do desvio. Mas foi só uma dificuldade momentânea já que, apesar de implicar uma volta maior, esta alternativa é muito menos massacrante do que a subida directa de Barrosas. Em Regilde foi altura de comer qualquer coisa diferente das barrinhas e do gel, para depois enfrentar a última grande dificuldade do dia: Subir o restante da encosta da Serra do Relógio. A subida final é constante mas de declive suave o que facilita a progressão e acaba por ser simpático para as pernas, que já tinham a sua quota diária de subidas complicadas preenchida.
Aqui os dias curtos fizeram-se notar numa situação algo complicada. Ainda não tinha chegado a Barrosas e já a visibilidade era notoriamente reduzida. Tinha colocado as luzes de presença há uns quilómetros atrás, mas preocupava-me sobretudo o troço isolado, sem iluminação pública, que iria apanhar de Barrosas até à N106. A réstia de luz solar permitia perscrutar a estrada em frente por forma a evitar os buracos maiores, mas o maior receio era com os carros que pudessem vir mais à vontade naquela estrada menos movimentada. O facto de ser um final de tarde de Sábado ajudou a que o movimento de automóveis fosse muito reduzido e assim passei esse bocado sem problemas. Ainda assim, numa próxima prefiro evitar o sobressalto. Com as horas de exposição solar a aumentarem à média de 2 minutos por dia, daqui a mais algumas semanas já haverá alguma margem de segurança para chegar a casa com iluminação natural.
Chegado aos arredores de Raimonda estava na hora de carregar a fundo e dar tudo por tudo para chegar a casa o mais rapidamente possível, escapando à noite já instalada. Conhecia bem o perfil da estrada e sabia que podia aumentar o ritmo uma vez que não havia subidas dignas de nota até ao final. Reflexo disto foi o facto de que, mesmo com o cansaço acumulado de uma volta bem dura, os últimos 30Km foram percorridos precisamente à media de 30Km/h, com as longas rectas de Carvalhosa, Sobrão e Frazão a serem feitas bem próximo dos 40km/h.
Cheguei a casa exausto mas radiante. Poderá ter sido exagerado, ou se preferirem "guloso" cumprir este passeio gourmet numa altura em que os dias são curtos e a forma não está no auge, mas estava aqui a remoer e por isso, como os dias favoráveis são raros neste inverno, há que aproveitar até ao último centímetro de alcatrão. Balanço muito positivo e mais uns fantásticos quelhos desbravados para juntar à conta pessoal.